Barbie Boy Maiderson
“Quando criança e adolescente, eu era um menino que até se enquadrava nos padrões de beleza. E, como um menino gay, essa era uma ajuda social: podiam falar que eu era gay, mas não podiam me chamar de feio. Então, a beleza foi meu porto seguro por um tempo”, conta o designer de moda e influencer Maiderson, de 31 anos. Quem vê seu perfil colorido e rosa nas redes sociais (onde se autointitula Barbie Boy Maiderson), talvez não imagine o quanto ele teve que brigar para ter acesso a elementos ditos femininos, como a boneca Barbie, e construir o seu universo pop e lúdico tão particular em uma sociedade que constantemente afirma que “isso não é coisa de menino".
Quando adolescente, Maiderson teve acne, o que acabou abalando sua autoestima. “Comecei a usar muita maquiagem e, mesmo depois que minha pele estava sem espinhas, ainda fiquei preso a essa ideia de perfeição”, conta. Já a maquiagem trouxe consigo outro peso. “Eu não queria mais sair de cara lavada. Queria sempre passar iluminador, sentir minha pele linda a todo momento. Tive que me fortalecer nisso, porque as pessoas me achavam muito estranho. Muitos homens passam um BB cream ou só um hidratante... É diferente ver um homem usando maquiagem assumidamente. E, além de tudo, eu mostrava na internet que fazia isso”, explica.
Mesmo hoje, com 31 anos, e esse passado longínquo, algumas nuances sempre voltam. “Não posso dizer que essa questão está totalmente superada. Eu tenho as minhas inseguranças. Sei que não sou uma figura que vai ser aceita por todos sempre. Nesses dias, que às vezes se estendem em fases, sinto vontade de ser mais discreto, e aí eu penso: opa! Não! Isso é o que me torna único: não quero perder o meu brilho.” Pensar que ele é uma referência e inspiração para outros meninos e homens que também se encantam com um universo compreendido socialmente como feminino é também um empurrão a mais quando a barra está pesada. Mas Maiderson fica atento para os limites: “Se alguém comenta que queria ser como eu, fico chateado. Não quero incentivar as pessoas a seguirem um padrão. Até a Barbie hoje é plural, tem diversos tipos de corpo, cores e cabelos. Acho as diferenças maravilhosas”.
Para o Barbie Boy, o espelho surgiu mais límpido quando ele pôde valorizar sua excentricidade, vê-la como uma potência e não como uma fraqueza. “Quando olho para mim, vejo alguém que muitas vezes duvidou de si mesmo, de sua força e beleza. Mas que, ao longo do caminho, aprendeu que tudo aquilo que diziam ser motivo de vergonha era, na verdade, o que me fazia especial e tornava o mundo mais bonito."
Bruna Assis
A jornalista Bruna Assis, de 26 anos, sempre viu a moda como uma forma de expressão. Para ela, no entanto, o mercado desse setor parecia ser uma via tortuosa para seguir adentro. Quando era criança, participou de diversos desfiles infantis e adorava os holofotes, até uma prova de roupa traumática. “A dona da loja falou para a minha mãe: não precisa mais trazer sua filha, ela está gorda.”
A moda, no entanto, era parte da família: nascida e criada em São João Nepomuceno, pólo têxtil do interior de Minas Gerais, Bruna sempre se viu íntima desses ofícios. Aos 16 anos, quando queria usar roupas que não eram feitas no seu tamanho – e que caso fossem, não tinham um preço acessível – pedia para sua mãe criar diversas modelagens e, juntas, conseguiam confeccionar uma nova peça. “Quando minha mãe era mais nova, ela bordava para fora para fazer renda extra. Sempre tive uma relação importante com isso, mas só dentro de casa”, lembra. Até hoje as duas continuam nessa parceria.
“Quando engordei e deixei de ser uma criança 'bonitinha' para me tornar uma criança gorda, parei de ser chamada para desfiles. A insegurança surgiu e aí começou o meu problema com o corpo”, retoma Bruna. Não ter um corpo que se encaixa no padrão estabelecido e o julgador olhar dos outros trouxe até sua vivência dores e questões que só foram dissolvidas muito depois, com a ajuda do autocuidado e de processos terapêuticos. “Desenvolvi ansiedade, compulsão alimentar e até depressão. A relação de ódio com meu corpo acabou acarretando relações tóxicas no meu círculo social, tudo por viver à sombra de um medo e uma vergonha muito grandes.”
Para ela, a emancipação também se intensificou com a ajuda da internet e das redes sociais: “Quando eu excluí todas as pessoas que tinham aquele padrão que eu queria, de mulheres magérrimas, e comecei a seguir mulheres que tinham o corpo igual ao meu, além de páginas que falavam sobre gordofobia, comecei a me enxergar de forma diferente.” Se para alguns os posts nas redes parecem apenas uma vaidade, para Bruna o compartilhamento de imagens tem muito mais força: “A minha primeira foto de corpo inteiro no Instagram foi o primeiro dia que me enxerguei. Naquele dia eu falei: sou gorda e todo mundo sabe disso. Então, comecei a compartilhar minha vida no Instagram.” Com uma renovada relação com padrões estéticos, ela fala sobre moda e beleza e isso contribui para sua autonomia. “Para mim, moda é política. Ainda mais para uma pessoa gorda ou para grupos minoritários.”
Júnior Sá
“Acho irônico o ser humano ser capaz de criar algo tão incrível como a internet e, ao mesmo tempo, limitar a beleza a determinados padrões estéticos”, avalia o artista Junior Sá, de 25 anos, morador de Brasília. “Ou não entender a diferença como algo belo”, completa. Foi o desconforto frente a esses paradigmas que impulsionou o jovem a não tomá-los como verdade. “Sempre tive esse entendimento de que a beleza tem que ir além, tem que ser peculiar e única. Entendo o belo como uma essência transmitida por meio de algumas características.” A poética é natural para alguém que se reveza entre diversos meios artísticos, como a composição, o canto e a atuação.
Para ele, o paradoxo da beleza é muito evidente: “Nós temos uma falsa visão de que os padrões de beleza estão mais acessíveis, quando, na verdade, eles apenas se ajustam aos novos tempos. Mas sempre existe um padrão, certo? Às vezes saímos de um para entrar em outros”, pondera. No entanto, Júnior consegue identificar a potência de se sentir fortalecido pela beleza. “Para uma pessoa negra, agênera e que não é rica, ser visto como belo pode ajudar a se reconhecer, a ter identidade.”
Hoje, como modelo de moda e se apropriando de quem ele é, cada vez mais forte em sua produção artística, a personalidade festeira e montada antes da pandemia começou a dar lugar a um outro Júnior, que foi além: “Sei que é um momento pesado, difícil. Mas me olho no espelho sem os acessórios que tínhamos antes da quarentena, e mesmo assim me vejo belo. Para alguém que vem de uma família negra retinta, cujo irmão já sofreu preconceito por causa de padrões estéticos, isso é uma grande conquista.” Ele finaliza contando o que vê quando olha no espelho. “Vejo uma criança que nada sabe e isso é incrível. Estou voltando a ser criança! É sempre uma descoberta. Me vejo bonito, pronto para me dar novas formas todos os dias, sem as limitações impostas.”
Jamile Capistrano
“Aprendi na moda e na beleza a ser quem eu sou, sem regras”, conta a estilista e consultora Jamile Capistrano, que tem 25 anos. “Isso não se resume a comprar. Na verdade, é um sentimento: é ser quem você é de dentro para fora." Apesar de ter sempre se sentido fora do padrão e desse processo ter sido muito dolorido (“afinal, o padrão é de pessoas brancas e loiras, tudo que não sou”), Jamile nunca desgostou do seu cabelo natural. O rótulo pejorativo vinha de fora e foi, aos poucos, se internalizando. Assim, começou a usar produtos para diminuir o volume dos cachos e queria ter a raiz lisa. “Nas festas era só cabelo escovado, senão era considerada desarrumada. Isso trouxe muitas feridas”, relembra.
As coisas começaram a mudar com o forte movimento de empoderamento que partiu das mulheres negras com cabelos crespos e cacheados. Mesmo que não tenha passado por transição capilar, foi conhecendo mais sobre esse processo que Jamile começou a ver a discussão sobre os padrões excludentes e, então, se reconheceu. “Eu tinha muitas espinhas e manchas, e ainda tenho. Sempre me senti longe do ideal.” Então começou a seguir pessoas com belezas com as quais ela podia se relacionar, questionou o seu uso de maquiagem e, como no seu trabalho, começou a aplicar em si o que mais acredita como consultora: que beleza se enaltece, se eleva, já que todos têm suas particularidades.
“Quando eu seguia regras e pessoas que ditavam moda, cheguei a pensar: essa não sou eu”, diz. As estampas e cores que tinham saído de seu armário, dando espaço para roupas pretas e brancas, voltaram com força. “Decidi que não queria ser igual a ninguém, queria ter o meu próprio estilo.” Mas a auto-estima é algo flutuante, e durante o período de pandemia da Covid-19, apesar de ter passado por essa aceitação da pele e não estar tão ligada nos padrões, apareceu um outro desafio: “Me senti mal porque engordei 10 quilos. Isso está sendo difícil para mim. Penso na Beyoncé, uma grande inspiração de empoderamento”, aponta. "Quero ser como eu sou, passar o que eu sou de verdade, ser transparente comigo e com os outros. O mundo muda, está em constante construção, e eu também.”
Beca Z Bicher
“Me sinto privilegiada por ter nascido empoderada nessa geração”, Beca Bicher conta, rindo. Brasileira e muçulmana de 26 anos, sua autoestima e sua força, assim como a de seus outros três irmãos e três irmãs, sempre foram influenciadas por sua mãe. Quando criança, brincava com diversos tipos de roupas e estilos diferentes: às vezes colocava um collant e saia de balé, em outras pegava as roupas largas de seus irmãos, e nunca se importava com os comentários na escola. “Se hoje sou forte para usar meu hijab, é por causa disso. Eu tenho muita segurança de quem eu sou”, atesta.
Com a faculdade de moda paralisada por causa da pandemia da Covid-19, Beca intensificou sua produção de conteúdo sobre maquiagem e moda modesta nas redes sociais. “Muitas pessoas generalizam o que é a moda modesta”, explica. O termo, de fato, gera confusão. Sem origem definida, mas muito utilizado por mulheres de origem judaica, muçulmana e cristã, o estilo preza por roupas que não modelam o corpo excessivamente – mas que também oferecem autonomia e estilo para as mulheres. “A modéstia não significa mau gosto, pelo contrário. Temos muitas opções: blazer, pantalona e saias mídi”, lista.
Beca também tem o desejo de intensificar aqui no Brasil o que já acontece em outros países. “A crescente visibilidade e representatividade das mulheres muçulmanas é inspiradora para mim. Faço vídeos com tutoriais porque tem muitas mulheres novas chegando, que não sabem como colocar um turbante, por exemplo, e é importante ter alguém para ensiná-las. Para mim, o hijab significa que eu tenho a escolha e a liberdade de me expressar plenamente”, conta. “O hijab nunca foi um sinal de opressão. A liberdade está no coração e na cabeça, e não no corpo, como muitos pensam."
Kerolyn Silveira
Atualmente, Dua Lipa e Lady Gaga são as duas principais referências de moda e estilo para a stylist, designer e DJ Kerolyn Silveira, de 26 anos. Enquanto a primeira trouxe até ela uma abordagem mais tradicional do universo fashionista, a segunda foi, e ainda é, responsável por inspirar uma busca interior importante para Kerolyn. Principalmente no sentido de aflorar na jovem o seu lado mais excêntrico. "Trabalhando na noite, eu acabei desenvolvendo uma criatividade que nem imaginava que tinha. Vi maquiagens e looks que sempre estiveram em algum lugar na minha cabeça, mas que eu não sabia que poderiam existir na vida real. Tudo isso acabou mudando a maneira como eu entendo o que é belo", conta à ELLE Brasil.
Kerolyn descreve que foi uma adolescente que não se achava “nem bonita nem feia, apenas comum”. Com o decorrer dos anos, percebeu que o que estava faltando, na verdade, não eram os cabelos loiros ou olhos azuis, derivados de um padrão de beleza hegemônico e europeu. O que ela ainda não tinha descoberto era a possibilidade de explorar sua própria identidade por meio de sua imagem.
Por isso, ao sair da pequena cidade de Dourados, no Mato Grosso do Sul, e migrar para Maringá, no Paraná, a multiartista determinou-se a descobrir novas maneiras de se expressar. Assim, começou a colecionar referências para, quem sabe um dia, conseguir montar o quebra-cabeça que responderia a pergunta: “Quem sou eu?” “Minha maior ferramenta é a minha pesquisa. E esse é o meu autoconhecimento: do que eu gosto? Com o que eu me identifico? Através dessa busca em maquiagem, looks e tudo o que envolve esse universo da noite, do brilho, vou me compreendendo.”
A stylist acredita ter encontrado um meio termo para se sentir bem consigo mesma. Mesmo que a beleza ainda seja um lugar paradoxal, no qual é possível alcançar certa emancipação, ela acredita que é preciso ter consciência das armadilhas no caminho. “Quando faço minha rotina de skincare, filmo e posto. Sei que estou fazendo isso pra me encaixar... Quando eu não posto ou filmo, estou fazendo isso por mim.” Tendo em vista esses dois lados da mesma moeda, para Kerolyn, hoje, a experimentação é mais sobre identidade e menos sobre máscaras: “por causa de tanta maquiagem, tantos looks, talvez eu não me enxergasse antigamente. Mas, quando eu me olho no espelho agora, antes de tudo, eu consigo me enxergar para valer.”
Vitória Alves
O processo de autoconhecimento de Vitória Alves, de 20 anos, moradora de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, está intrinsecamente relacionado com sua transição capilar. Quando era criança e adolescente, ela não se via como uma pessoa bonita. “Eu queria ter o cabelo liso igual ao das meninas da escola. Não tinha quase nenhuma referência. Só via pessoas brancas e de pele mais clara sendo consideradas belas, então, não conseguia me ver assim."
Vitória começou a alisar os cabelos aos 11 anos de idade, prática que só pararia aos 15, quando iniciou a transição, um momento que é considerado chave pela maioria das pessoas que passam por ela. “Eu percebi que não alisava para mim, mas para os outros, para me sentir acolhida e incluída. Pensei: 'chega de tentar ser algo que não sou'.". O seu eu e sua identidade começaram a surgir mais fortemente naquele momento. “Eu pensava: 'agora sim eu sou a Vitória.'” Quanto mais ela se compreendia, mais nasciam as outras vontades de expressão e de força, como a escrita, a poesia, e uma visão mais artística de si mesma.
Depois da transição, no entanto, Vitória queria ir ainda mais longe no seu processo de construção de identidade. “Primeiro raspei o cabelo dos lados, e depois raspei tudo. Queria perceber que eu poderia me achar bonita de qualquer jeito." Durante o período de pandemia, sua cabeça foi tela para que ela pudesse experimentar novas cores e fazer o que sempre teve vontade.
Hoje ela também é parte da agência Made in Favela, cujo propósito é ajudar jovens periféricos que sonham em ter uma carreira como modelos, mas que não têm condições financeiras para seguir os caminhos mais tradicionais da profissão. “Eu já havia participado de duas agências anteriormente, mas não conseguia me encaixar”, conta. Hoje, sendo parte dessa agência, a situação é mais favorável.
Para Vitória, o mundo da beleza e da moda estão mudando, mas ainda falta muita coisa para que ele seja realmente justo – principalmente, referências que contemplem a diversidade. “Ainda quero ver alguém com o cacho bem fechado em propagandas ou editoriais, por exemplo. As imagens são sempre de cachos mais abertos. A gente acha que está sendo representada, mas não é bem assim. Ainda tem muita coisa pra mudar.”
Auá Mendes
Na obra da artista visual manauara Auá Mendes, de 21 anos, as histórias resguardadas por seu próprio corpo funcionam como o ponto de partida de seu processo criativo. “Enquanto pessoa indígena e travesti, eu gosto sempre de ressaltar que não estou sozinha e que esse corpo não é só meu”, disserta, pouco antes de se aprofundar na questão da ancestralidade que cumpre papel fundamental no seu entendimento de si e de suas relações com o mundo.
“Quando comecei a procurar por mim e a tentar entender quem eu era, dei início a uma grande pesquisa, que, atualmente, é o que sustenta o meu trabalho artístico. Fui conversar mais com as mulheres indígenas da minha família e procurei entender melhor a situação extremamente violenta em que vivem as pessoas trans no Brasil, por exemplo.” Para Auá, o artista independente trabalha com uma dimensão do ser humano tão essencial quanto qualquer uma das profissões mais valorizadas pelo mercado tradicional. Ela acredita que essas narrativas têm o poder de fazer com que o seu espectador questione a si e a sociedade em que está inserido. "E esse valor não é compreendido, apesar de ser crucial para a ideia de um ambiente mais justo." Não à toa, a procura por sua própria beleza está engendrada no desenvolvimento de seus desbravamentos artísticos, que passam por terrenos diversos: ela é grafiteira, ilustradora, performer, fotógrafa e maquiadora.
Hoje, quando olha no espelho, sua mente transcende a matéria física de seu corpo. Ao descrever sua imagem, Auá fala de uma história não contada, de um ponto de vista silenciado, de existências que foram gravemente violentadas pelo colonialismo. “Se eu estou aqui hoje, conversando com vocês, é porque muita gente veio antes de mim abrindo esse caminho. Existe um atravessamento dos corpos indígenas e travestis no que vejo. E eu quero fazer parte dessa trajetória.”
Géssica Marinho
“Quando me olho no espelho, vejo o olhar de todas as outras mulheres junto do meu. Vejo muita ancestralidade… É o que me mantém mais forte. Vejo uma mulher que se entende bonita, e que antes não conseguia enxergar isso em seus traços”, conta Géssica Marinho, 30 anos. A designer e produtora de moda carioca se mudou para São Paulo, há 3 anos, para crescer profissionalmente na capital paulista (“Juntei as roupas, fiz um bazar, peguei as malas e vim”, lembra). Olhando em retrospecto, no entanto, parece que existiam outras energias que atraíram Géssica para a metrópole.
Enquanto adolescente, ela sofria na tentativa de aceitar a sua beleza natural: "tinha até uma listinha de coisas que eu queria mudar, principalmente minhas características afro", recorda. A falta de referências, naquela época, dava espaço para que o racismo tão presente nos ideais pulverizados pelo mercado atacasse sua autoestima. "Dificilmente, encontrava momentos em que me achava bonita porque o único modelo possível para comparação era o de um corpo totalmente diferente do meu", diz, referindo-se à branquitude disseminada pela mídia e publicidade como possibilidade exclusiva de beleza.
Para Géssica, a mudança geográfica para São Paulo representou também uma mudança de mentalidade: a vinda para a cidade era sua oportunidade de, finalmente, encontrar-se consigo mesma de uma perspectiva pacificadora. "Vir para cá e perceber que aqui tudo era permitido me transformou. Passei a valorizar a minha originalidade. Quanto mais diferente, melhor!". Sobre os anos que ela atravessou sem se amar como se ama atualmente, Géssica explica que não se arrepende: foi uma caminhada que a trouxe até aqui. E, se antes era difícil ter leveza suficiente para conseguir brincar de ser bela, agora a designer vive isso em sua máxima potência. "Sempre gostei de brilho e de cor. Sabia que isso me valorizava, mas não tinha referências."
O senso de comunidade também foi importante para que ela renovasse o seu olhar. Em São Paulo, ia para festas nas quais encontrava outras mulheres com cabelo black solto ou com tranças. A partir desses novos exemplos, Géssica foi, aos poucos, se reconstruindo afetivamente em frente ao espelho. “Meu principal processo de empoderamento foi o de me enxergar.” O que não significa que não houve momentos nos quais ela teve que ficar de olho em sua autoestima: “Dentro de suas comunidades, as pessoas acabam criando outros padrões. Se achar bonita e inserida também não é simples.”
Por isso, hoje, ela evita essa tentativa de se inspirar na beleza de outras pessoas. “A partir do momento que você tem um referencial de beleza, você acaba criando uma fórmula em que nem sempre vai dar para se encaixar. As pessoas são belas pelas coisas mais simples, sabe?” Um conselho para se deixar afetar menos com os padrões e se divertir mais? “Viver cada dia. Abrir a mente de fato para tudo. Se olhar, se enxergar nos pequenos detalhes. Ver o que tem só em você. E em ninguém mais.”
Taís Valença
Para Taís Valença, recifense de 25 anos, quanto mais ela lia sobre feminismo e positividade corporal, mais se dissolviam as noções fixas sobre beleza. Apesar de não ter se sentido pressionada quando mais nova ela – “e mesmo que eu ocupe um lugar de privilégio” –, ao longo da adolescência começaram a aparecer os primeiros comentários sobre peso. “Aqueles clássicos: 'nossa, você deu uma engordadinha, né?'”, exemplifica.
O comentário que parece inocente, no entanto, esconde uma camada de violência que pode, sim, afetar negativamente o desenvolvimento de alguém que ainda não saiu da adolescência ou não tem um processo de autoestima fortalecido. “Sempre fui muito exigente comigo mesma. Acabei passando por problemas de distúrbio alimentar, e depois com empoderamento e terapia, tentando ser mais compreensiva comigo mesma e com o outro, fui, aos poucos, superando essas questões.”
Hoje Taís, que é fotógrafa, modelo e stylist, consegue ver que a beleza transcende a questão externa e usa o auto-retrato para se olhar de forma mais profunda. “Se estou confortável comigo, com meu cabelo, com a minha produção ou não, o que importa é que eu sou como eu sou. Parece clichê mas é verdadeiro.” Para ela, isso está muito conectado com uma diminuição do consumo e uma tentativa se compreender como um sujeito que não se resume ao materialismo: suas roupas vêm de brechó e, na beleza, os cremes e ativos de origem natural são importantes. “Às vezes, eu até faço auto-retratos sem maquiagem para me enxergar dessa forma: com menos pressão, menos dúvida sobre a minha capacidade.”
A multiplicidade de vozes na internet também abriu espaço para uma noção mais ampla de beleza. “Existe um discurso muito grande de positividade corporal, e eu procuro me cercar disso. Seguir quem fala sobre isso, ter referências assim, mesmo de pessoas que sejam diferentes de mim, me aquece o coração. Ver outras pessoas se aceitando e ganhando visibilidade é muito importante. Isso vem antes de qualquer coisa que se torne comercial.” Quando Taís se olha no espelho – ou nas lentes de sua própria câmera – vê uma mulher ainda em "desconstrução". "Se olhar no espelho é também saber seu local de privilégio. Mas, mesmo tendo todas as minhas questões, eu entendo onde estou, e isso é muito potente.”
Sabrina Henrique
“Durante a pandemia, em relação à beleza, eu tive uma queda de autoestima. Não conseguia me olhar muito no espelho. Sempre fiz selfies, para mostrar como estou no dia a dia, e nem para isso eu estava tendo vontade”, conta Sabrina Henrique, de 23 anos. A modelo, que cursa matemática, nasceu em São Gonçalo e hoje mora em Niterói. “Quando voltei a olhar para o espelho de verdade, me vi sem vida. A partir daí, comecei a praticar mais autocuidado, a fazer exercícios, a passar cremes e fui melhorando”, conta.
A relação instável com o espelho data de outros tempos: quando começou a carreira de modelo, incentivada por uma prima, deparou-se com padrões corporais difíceis de alcançar. “Nunca me achava boa o suficiente, sempre senti que estava gorda e que perderia trabalhos por isso”, lembra. Os distúrbios alimentares surgiram e os quilos se foram, mas levaram junto deles a saúde. Em dado momento, a situação se agravou, culminando em anemia e baixa imunidade.
Foi aí que ficou escancarado para Sabrina que a questão da autoestima e do reconhecimento próprio poderiam ser ainda mais antigos do que ela imaginava. “Na minha infância, minha adolescência e também na minha vida adulta, sempre ouvi da família que eu era linda. Mas em outros espaços, como na escola, não era bem assim. O racismo se fazia presente: a pessoa mais bonita era sempre a menina mais branca, e a mais feia sempre a menina com o tom de pele mais escuro, que era eu”, recorda.
Para se recuperar, ela precisou encarar de verdade o espelho, com sinceridade. “Quando chegou minha fase adulta, comecei a me enxergar como eu sou, e as pessoas começaram a me enxergar também. Percebi que se você se aceita do jeito que você é, as pessoas vão te enxergar também dessa forma”, explica. Sabrina acredita que os padrões de beleza estão mais acessíveis, mas é preciso ficar atenta porque eles já foram bem cruéis. “Nas revistas e na televisão o padrão segue forte”, critica. E vai além: "Ouvir que sou linda não é suficiente. As coisas têm que mudar e, junto com isso, tenho que me empoderar também, me aceitar. Toda vez que me olho no espelho, eu me enxergo. Estou começando a me ver: uma pessoa que tem determinação, incrível e que sempre tenta melhorar de todas as formas."
Elly Queiroz
Como muitas outras garotas, durante a infância em Itaquaquecetuba (região metropolitana de São Paulo), Elly Queiroz, de 17 anos, sentia o peso dos padrões: ficava imaginando os seus cabelos loiros, os seus olhos claros e a sua pele branca. “A sociedade e as capas de revista, assim como o mercado de moda, transmitiam que isso era beleza de verdade”, aponta. Ser magra e alta, na escola, não impediu que seus colegas de sala lhe atacassem com recorrentes insultos de cunho racista. “Até que cheguei a um ponto em que disse para mim mesma que não ia mais me sentir mal por ter meus traços indígenas. Me afastei de pessoas, dos lugares, mudei de escola", decidiu. "A partir daí, as coisas foram passando."
Como a maioria dos entrevistados para esses perfis, distanciar-se de lugares onde suas particularidades não eram reconhecidas foi um processo de grande importância e, em resumo, um enorme alívio. Ao aceitar suas características em novo cenário – agora na capital –, surgiu uma nova oportunidade: a carreira de modelo. Ao fazer o que gosta e se expressar, Elly foi aos poucos se reencontrando. “Acredito que me libertei desses padrões normativos quando compreendi a importância de ser quem eu sou. Em um país tão diverso como o nosso, a beleza que era padrão hoje está sendo questionada.”
O contato com outras mulheres que também caminharam por esse percurso de empoderamento foi essencial para que houvesse essa sensação de libertação com muita consciência. “A autoestima é o que nos ajuda a superar esses complexos. Consumir não resolve essas questões. Saúde emocional importa mais. É quando a gente se enxerga de dentro para fora: a beleza que mais faz sentido é como a gente se vê e não como outros nos enxergam. Ser simples é ser elegante”, finaliza.
Dani Calicchio
Para a artista Dani Calicchio, de 46 anos, uma ida ao salão para pintar os fios brancos veio acompanhada de uma epifania: “Quando eu via aquela água preta da tinta escorrendo, imaginava essa água desembocando no rio que me banho, tingindo a água que eu bebo. Como várias mulheres que tenho visto, resolvi não tingir mais meu cabelo”, declarou. Formada em dança pela UNICAMP e sempre nos palcos do país – às vezes no backstage, outras à frente do espetáculo – ela se expressa através do corpo desde os 13 anos.
Corpo este que sentiu a mudança dos padrões estéticos femininos nos anos 2000: “Lembro de ter tomado remédio para emagrecer, fiz mil dietas, mas depois isso foi ficando um pouco para trás”, conta. “Quando você vai ficando mais velha, vai se assumindo, trabalhando com o que tem de melhor. Eu amo meu corpo. Sempre gostei mais de pensar e focar no que eu tinha para comunicar do que numa beleza idealizada.” Por isso, os procedimentos estéticos para manter uma juventude estetizada nunca estiveram nos planos de Dani.
A arte também foi um elemento essencial no seu processo de autoconhecimento: “O artista aprende a criar possibilidades, a fabular. Criamos saídas e caminhos para as situações”. Dessa forma, suas evasivas frente aos paradoxos da beleza sempre foram muito criativas. “Não sei se sou ingênua, distraída ou autêntica. Talvez tudo! Tenho cabelo raspado, me visto do jeito que quero. Para mim, é absolutamente natural respeitar a voz interna.” A ideia de colaborar com o processo do outro também está presente no seu projeto Dance In Pause: uma pesquisa de dança, moda e fotografia que começou há mais de dez anos e que hoje é publicada no Instagram. Com pessoas em movimento, pulando e dançando, trata-se de uma ode ao movimento, à liberdade e ao desprendimento.
A pandemia também foi um ponto crucial de virada para Dani. “Não é admissível a gente pensar em beleza na medida em que ela agride qualquer sistema vivo. Se para produzir um creme você machuca um bicho, ou alguém, ou tira uma planta e não a repõe, o que vai acontecer? Isso me causa desconforto. Nessa quarentena, assumi isso. Tenho procurado ser uma pessoa mais medicinal para mim, para o outro, para o mundo. As questões com a beleza foram dando espaço para as ações de autocuidado, menos pela estética e mais pelo prazer, pela saúde física, mental e espiritual”, arremata.
João Miranda
“Sou uma drag cansada. De vez em quando eu me monto, de vez em quando eu saio como eu mesmo. É uma expressão minha: da mesma forma que alguém faz um delineado gatinho, eu faço uma supermake elaborada. Gosto de ir além do tradicional”, conta João Miranda, que tem 25 anos e é designer gráfico, coordenador de mídias sociais e maquiador. João descreve que sempre foi ligado à estética e ao universo da arte, mas que a área da beleza ainda era um lugar considerado reservado apenas para mulheres.
Em 2015, João teve leucemia, o que o obrigou a dar uma pausa nos estudos, no trabalho e na vida. “Tive remissão completa do câncer em 2018, após ter feito um ano de quimioterapia. Foi só em 2018 que as coisas começaram a se encaixar novamente”, relata. Após esse período, ressurgiu nele uma grande vontade de ser independente. Ao mesmo tempo, como convivia com amigos artistas e drag queens, começou a se interessar cada vez mais por maquiagem e beleza. Pronto, estavam aí os elementos que o tornariam ainda mais forte.
Primeiro, ele aprendeu tudo sobre os produtos na internet, foi fazendo compras aos poucos e, então, se especializou no SENAC. Junto com isso, veio seu processo de emancipação pessoal: se reconheceu como queer (um termo guarda-chuva que abrange várias identidades que fogem às regras da binariedade e da heteronormatividade), participou do processo terapêutico da psicanálise e então abriu as portas para quem ele era de verdade. “Às vezes, as coisas fazem você achar que é doido, que você não existe”, conta. “Estou em uma margem estética. Sou apontado, às vezes sou agredido verbalmente por não estar dentro de expectativas de gênero. Mas eu me sinto bem comigo mesmo, não estou representando um personagem”, afirma. “Tenho sorte, sou privilegiado, a verdade é que tem pessoas trans morrendo nas ruas. O preconceito é estético, sim."
Como maquiador, João considera que o ingrediente ideal para transformar o mundo da beleza em um lugar mais aceitável é a humanidade. “É preciso ter mais coração na hora de tratar os clientes, não ficar colocando os padrões nas pessoas”, afirma. “Maquiagem pode ser tanto para oprimir quanto para libertar. Tem muita gente invertendo esse processo”.
Quando se olha no espelho, vê um João que é mais profundo, sensível e que consegue colocar em prática sua liberdade e suas visões artísticas. “Sempre tive um olhar que buscava o diferente. Sempre gostei de coisas extravagantes. Meu olhar, de certa forma, sempre foi pra ir além, expandir as fronteiras. Me sinto confortável comigo mesmo, confortável em mim. Vejo alguém que se conhece e que é feliz consigo mesmo.”
Ully Correa
Quem vê uma pessoa magra, alta e teoricamente dentro dos limitados padrões de beleza impostos poderia imaginar que a diretora de arte Ully Correa, de 27 anos, sempre esteve em paz com sua aparência. No entanto, como escreve Naomi Wolf no livro O Mito da Beleza, o culto à beleza, com maior ou menor força, acaba por atravessar a vida de todas as mulheres. Por isso, esse tema já teve um aspecto conturbado para Ully. “Eu sou neta de libaneses, então carrego muitos traços árabes: nariz adunco, tom de pele mais escuro, cabelos cacheados. Obviamente, não me considero uma pessoa negra, mas também não sou branca. Por fim, nunca soube quem eu era. Sou alta e magra, mas isso também teve impacto: de onde eu vim, na periferia de São Paulo, a minha magreza, com pernas finas, estava longe de ser um padrão desejado.”
Durante a adolescência, isso acabou por criar uma confusão mental em Ully – uma cisão e um nó que só foi começar a ser desembaraçado depois de sair da escola. Ao começar a trabalhar e ganhar seus recursos, as possibilidades se alargaram: começou a se vestir da maneira que sempre quis e a ter mais referências de mulheres parecidas com ela.
Com isso, o recorrente desejo de realizar procedimentos cirúrgicos, como colocar silicone ou fazer uma rinoplastia, diminuiu. Resgatou o prazer de se fotografar, um hábito que já a acompanhava desde os 15 anos, quando ganhou a primeira câmera digital. Com a primeira selfie vieram também novas formas de se reconhecer, de olhar para a sua identidade, que antes estava espalhada e perdida em meio à visão dos outros.
“Demorou um pouco para que eu me sentisse melhor. Na verdade, sinto que não cheguei ao final do meu processo de empoderamento. Mas as selfies, por incrível que pareça, me ajudaram a me entender e a me sentir mais bonita. A internet me ajudou de alguma forma a ver beleza em mim”, descreve. Quando se olha no espelho, ela vê um barbante cheio de nós que está sendo desenrolado: “nunca vai ser um fio perfeito, mas todos os desenrolares e marcas são essenciais para entender quem eu sou.”