No dia 1º de agosto de 1999, oito crianças em um acampamento de verão no Japão veem cair do céu apetrechos tecnológicos. Um digivice para cada digiescolhido. Em seguida, o mar se abre para aumentar o susto e, de repente, todos eles são sugados pela correnteza que, impiedosamente, os arrasta até um plano diferente do que habitavam até aqui. No digimundo, cada criança é apresentada a seu respectivo digimon. Destinados por uma profecia a lutar ao lado desses monstrinhos digitais contra as forças do mal, eles se unem e é esse pacto – aliado a uma inevitável abertura para o crescimento – que faz com que aconteçam as digievoluções: transformações que atravessam esses seres virtuais e os carregam de novos poderes. Som na caixa, DJ...
O primeiro riff da guitarra de "Brave Heart" – música de Ayumi Miyazaki que acompanha
as digievoluções no anime – imediatamente dispara o gatilho da nostalgia para quem acompanhou o frisson que foi a reprodução da série animada na Rede Globo nas manhãs do começo dos anos 2000, no Brasil. Duas décadas depois, os personagens criados por Akiyoshi Hongo (pseudônimo que aglomera os multiprofissionais Aki Maita, Takeichi Hongo, Tenya Yabuno, Hiroshi Izawa e Katsuyoshi Nakatsuru) foram redesenhados, reanimados e reescritos com o auxílio de novas tecnologias e prometem eternizar-se no imaginário global como um dos animes de maior sucesso ao redor do mundo. A segunda versão da primeira temporada de Digimon Adventure
já está disponível na Crunchyroll.
É curioso como a proposta do enredo de Digimon parece ter, cada vez mais, se aproximado da realidade. Agentes humanos que mergulham em um universo digital para fazer reformas que se refletem diretamente no que chamamos de "vida real"... Essa era a promessa da internet, não? E, em certa medida, é o que temos visto acontecer: o mundo virtual como um campo de batalha. Claro, muito menos maniqueísta, e sim repleto de nuances.
(Parênteses para sair do viés da nostalgia e entrar num contexto histórico: Caroline Ricca Lee, pesquisadora multidisciplinar brasileira com ascendência sino-japonesa, lembra que o Ocidente vem desenhando há séculos a sua própria visão das identidades asiáticas, muitas vezes sob uma perspectiva preconceituosa e reducionista. Especificamente a respeito do Japão, com o boom financeiro do país nos anos 1990, a economia japonesa lança mão de estratégias de "soft-power" para, então, ser entendido pelo resto do mundo como um elemento-chave nos desdobramentos do capitalismo do futuro. Com isso, novamente, a projeção ocidental a respeito das identidades asiáticas ganha novos estereótipos ao resumir todo um continente extremamente plural a um Japão obrigatoriamente ultratecnológico e de alta performance.)
A conexão dessa visão do Japão com o digimundo fica evidente quando entendemos que a cultura pop é um instrumento de construção ideológica. E, assim como os animes, as revistas de moda e de beleza também fazem parte desse diálogo. Por isso, o editorial acima esboça um novo digimundo em que cabem percepções não-normativas de diferentes identidades. Um digimundo que se desloca do mundo real e de suas categorias identitárias estratificadas para, então, questioná-las nesse espaço de fantasia. Por que uma mulher nipo-brasileira não pode ser lida com a coragem vanguardista das digievoluções de Agumon? Por que um homem brasileiro coreano não pode ter a sensibilidade aguçada de Piyomon? Por que uma mulher negra não pode ser entendida como tão delicada como Palmon? Por que uma pessoa trans não é assegurada da integridade de Gomamon?
O responsável pela tradução desses elementos para a maquiagem é Gabriel Watoniki, que já vinha redesenhando não digimons, mas pokémons
em seu laboratório experimental de automaquiagem. Cada uma das maquiagens fotografadas representa uma diferente linha digievolutiva. Essas, por sua vez, correspondem individualmente aos brasões dos digiescolhidos – apetrechos mágicos que ajudam os digimons a se transformarem e carregam consigo diferentes valores – amor, sabedoria, coragem, amizade, luz, esperança, sensibilidade e confiança. Os sentimentos, por mais piegas que possam parecer, ainda mais diante dos tempos incertos e violentos que vivemos, têm, sim, a sua importância. Quando o mundo se desumaniza quase que progressivamente, vai que os digimons nos ajudam, pela invocação do fantástico, a recuperarmos algum tipo de humanidade, mesmo que infantil…
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