Das melhores coleções às principais tendências da estação, preparamos um guia completo com tudo o que você precisa saber dos desfiles digitais que aconteceram nos últimos meses.
Por Luigi Torre
2020 já pode ser definido como o ano do cancelamento (ou o ano que poderia ter sido cancelado, mas deixa isso para lá. A partir de março, a pandemia do novo coronavírus cancelou de um tudo: o contato social, as festas, os encontros familiares, os drinques com amigos, os milhares de contratos de trabalho, o beijo, o sexo casual e até o Carnaval de 2021 — pelo menos por enquanto, sejamos otimistas). Com as semanas de moda não foi diferente. Num primeiro momento, os desfiles de alta-costura e os masculinos, que aconteceriam presencialmente entre junho e julho, foram cancelados. Pouco tempo depois, a Fédération de la Haute Couture et de la Mode e a Camera Nazionale della Moda Italiana voltaram atrás e decidiram que sim, as fashion week iam acontecer. Porém, em formato digital. Teve transmissão ao vivo com 12 horas de duração, imersão no universo criativo de uma das mentes mais brilhantes da moda atualmente, colaboração com artistas plásticos e cineastas estrelados, roupas feitas com tecnologia 3D, caixas de surpresas e até quem decidiu que a internet não é o melhor lugar para apresentar uma coleção, realizando controversos desfiles presenciais
AS
MAIS
MAIS
Pela primeira vez na história, os desfiles de alta-costura acontecem em formato 100% digital. É um modelo inovador e alternativo à fórmula tradicional de se apresentar uma coleção enquanto as restrições de contato social inviabilizam tais acontecimentos. A adaptação, contudo, não é simples. Boa parte das marcas de luxo — das grandes às pequenas — viu seu faturamento despencar. Cortes na equipe, nos fornecedores e no volume de matéria-prima se tornaram via de regra em toda a indústria. Com orçamento e mão de obra reduzidos, conceber uma coleção e ainda arcar com os custos de apresentação (mesmo que digital) exige equações e planejamento complexos. As implicações vão da prática (coleções menores e menos complexas) à criação (reflexão, introspecção e referências ao turbilhão de sentimentos que nos acometeram durante o isolamento).
Mais do que testar novos formatos, as apresentações digitais mostram como a moda pode ser relevante em tempos distópicos. Os 50 minutos do vídeo assinado por Nick Knight para a Maison Margiela Artisanal poderiam ser facilmente puro deslumbre fashionista. Porém, uma edição precisa que combina as imagens de cores saturadas, características de Knight, com explicações e digressões de John Galliano sobre todo seu processo criativo — da pesquisa de referências às provas de roupa, beleza e briefing para o filme assinado por Nick Knight — fazem desse material verdadeiro deleite fashion.
Observar como imagens de estátuas de mulheres do século 19, os blitz kids (os clubbers de Londres nos anos 1980), os ternos zoot, a coleção Fallen Angels — que o próprio Galliano apresentou em 1986 — e um poema de Jean Cocteau resultam em looks que reproduzem (em tecidos e técnicas primorosas de corte e costura) a sensualidade de um vestido molhado sobre o corpo é registro vivo do que faz a alta-costura especial.
Na contramão das coleções passadas, esteticamente mais contidas, o inverno 2020 couture da Chanel tem uma leve pegada punk. “Estava pensando numa princesa punk saindo do Le Palace ao amanhecer”, escreveu Viard em um comunicado à imprensa. “Com um vestido de tafetá, cabelão, plumas e muitas joias. Essa coleção é mais inspirada em Karl Lagerfeld do que em Gabrielle Chanel. Karl sempre ia ao Le Palace [equivalente parisiense do Studio 54 de Nova York] acompanhando por essas mulheres sofisticadas e supermontadas, que eram também bastante excêntricas.”
Afastada daquela simplicidade restritiva das coleções passadas, volumes, brilhos e toda uma opulência entram em cena para jogar luz às peças agora apresentadas em 30 fotos de Mikael Jansson e em um vídeo de pouco mais de um minuto de duração com as modelos Adut Akech e Rianne van Rompaey.
Sobre sua inspiração, Viard escreveu que seu modo de trabalho é assim mesmo: “indo na direção oposta àquela da última temporada”. Ainda assim, é impossível não associar a rebeldia dessa princesa punk com o estado de espírito de muita gente nos últimos meses. Quem não teve um momentinho de surto dentro da própria casa ou da própria cabeça que atire a primeira pedra. Um pouco de loucura e excesso não faz mal a ninguém.
O inverno 2020 de alta-costura da Valentino foi apresentado em um vídeo assinado pelo diretor e fotógrafo britânico Nick Knight. Nele, pode-se apreciar a beleza das projeções digitais de flores, fogo, água, terra e vento sobre vestidos brancos suntuosos, de silhueta longuíssima, com metros e metros de tecido. Se por um lado surgem questionamentos sobre a necessidade de usar quantidade tão extrema de materiais em um momento de escassez e revalorização de excessos, por outro, existe uma explicação bem plausível.
Em comunicado à imprensa, a maison diz que a intenção é ressaltar ainda mais o enorme talento artesanal empregado em cada peça de couture. Moda não existe sem o toque humano. Em tempos de crise, enaltecer e fortalecer trabalhos tão preciosos tem a ver com humanidade. Vem daí também a escolha por uma coleção toda em branco. A cor é símbolo dos tecidos-base nos quais costureiras, bordadeiras, rendeiras e mais toda uma gama de profissionais dão origem ao que vemos na passarela ou, no caso, nas telas dos nossos telefones e computadores.
Ao lado do diretor de cinema Matteo Garrone, Maria Grazia Chiuri, diretora criativa da marca, criou um filme de 15 minutos para apresentar o inverno 2020 de alta-costura da Dior. O vídeo começa no ateliê da maison, em Paris, quase que num making of dos 37 looks apresentados na coleção. Os modelos são versões em miniatura de cada look. Trata-se de uma homenagem ao Théâtre de la Mode, exposição itinerante que começou em Paris em 1945 e rodou Europa e Estados Unidos. O objetivo era arrecadar fundos para os sobreviventes da II Guerra Mundial e promover a cultura e a tradição da moda francesa. Porém, com tecidos ainda escassos, os mostruários foram concebidos em manequins com cerca de ⅓ do tamanho humano. A partir daí, a narrativa mergulha num jardim dos sonhos, em que criaturas míticas vestem vestidos plissados e decorados com rendas e bordados com referências orgânicas, como folhas e raízes.
O filme apresentado por Maria Grazia é lindo, mas falha ao não abordar novas narrativas e a pluralidade que pede o mundo atual, a exemplo do casting 100% branco. Manter viva uma tradição centenária é importante e ela ganhará ainda mais força quando inserida em contextos atuais. A alta-costura nunca vai deixar de ser elitista e excludente, mas seu poder de comunicação é enorme e poderá ser mais relevante ao considerar e representar as mudanças indissociáveis do presente.
Para
sentir
mesmo
Sensibilidade é palavra-chave nesta estação. Quando os desfiles masculinos de Paris e Milão aconteceram entre meados de junho e julho, as restrições sociais na Europa já estavam mais brandas. Algumas poucas marcas optaram por retomar velhos padrões e realizar apresentações presenciais bastante controversas. Outras, mais em sintonia com a complexidade do momento, decidiram se aprofundar em maneiras mais criativas de mostrar não só novos produtos, mas, principalmente, novas ideias e questionamentos sobre o vestir. O melhor exemplo fica por conta das várias representações de masculinidade que pautaram algumas das melhores coleções da temporada.
Kim Jones, diretor de criação da Dior Homme, é um dos estilistas dedicados a essa nova representação masculina. Shapes volumosos aparecem num mix de alfaiataria, streetwear e elementos de alta-costura transportados para o prêt-à-porter. Porém, a ideia de desconstrução da masculinidade vai além da roupa.
Nesta temporada, Jones trabalhou ao lado do artista ganês Amoako Boafo (como contrapartida para a collab, Boafo pediu ajuda para criar uma fundação para jovens artistas em Acra). Em suas pinturas de cores vibrantes, não é raro homens serem retratados de maneira carregada de sentimentos e emoções. A masculinidade frágil tem impactos ainda mais profundos e trágicos nas comunidades negras. Repensar como essas pessoas são pintadas e apresentadas ao mundo é urgente.
Em um vídeo editado pelo diretor britânico Chris Cunningham, Boafo abre seu ateliê e nos conduz por uma viagem criativa sobre processos técnicos da pintura e questões sociais e culturais presentes em sua vida. É um material imersivo dificilmente possível durante um desfile. Na correria de uma semana de moda habitual, poucos se dariam ao trabalho de se aprofundar posteriormente em qualquer material à parte disponibilizado.
Hedi Slimane sempre foi grande entusiasta dos movimentos da cultura jovem. Porém, desde que assumiu a direção criativa da Celine, em 2018, sua abordagem sobre o assunto foi um tanto sutil — até para seus próprios padrões. Corta para 2020: a coleção masculina verão 2021 da marca foi uma verdadeira imersão nos principais códigos de vestimenta de uma geração que se comunica essencialmente por telas. No caso, telas dos próprios telefones e via aplicativos como o TikTok.
A apresentação foi filmada num autódromo no sul da França e divulgada via redes sociais e no site da grife francesa. Na passarela, cardigãs oversized, bermudas de surfe com estampas tropicais, calças de moletom com animal print, jaquetas com palmeiras bordadas, blusões de patchwork e ponchos imprimem uma vibe jovem — e bem grunge — a um repertório antes calcado nos trajes da classe média francesa.
Ame ou odeie, a apresentação provou-se sucesso de público e engajamento. De maneira quase mimética, Slimane transportou para um mundo de luxo a maneira como muitos jovens se vestem e se expressam hoje. A dúvida que fica é: não fosse esse desfile exclusivamente virtual (e, por isso, com audiência bem mais nova), a coleção seria apresentada exatamente assim numa passarela?
Os modelos e as roupas apresentadas pela Sunnei para a coleção verão 2021 não existem. Pelo menos não ainda. Tudo o que se vê no desfile foi criado digitalmente por meio de tecnologia 3D e só será produzido sob demanda. Ou seja, quando alguém ou alguma multimarca fizer um pedido específico. Trata-se de uma ferramenta já existente, porém popularizada graças ao isolamento social causado pela pandemia da Covid-19.
No caso da marca dos estilistas Simone Rizzo e Loris Messina, as peças aparecem todas em branco, mas podem ser tingidas de qualquer cor na hora da confecção. É, literalmente, a gosto do freguês. Alterações no design e acréscimos de detalhes em cada item também são possíveis. Após a apresentação, a dupla explicou que esse é um novo serviço que a marca oferecerá a seus compradores para minimizar desperdícios e produzir de maneira mais assertiva.
Não foi um desfile e nem havia ali uma nova coleção. Nesta temporada, o diretor criativo da Bottega Veneta, Daniel Lee, transformou a apresentação da marca num curta-metragem em colaboração com o fotógrafo e cineasta Tyrone Lebon. O tema? Uma reflexão sobre masculinidade nas vozes e corpos do ator Barry Keoghan, do diretor Dick Jewell, do artista George Rouy, do músico Obongjayar, do rapper Octavian, do dançarino Roberto Bolle, do músico Tricky, da cantora Neneh Cherry e do jovem Roman. É dele, aliás, algumas das falas mais emblemáticas do filme. Ao ser questionado sobre o que qualifica um homem, ele diz não saber e, mais para frente, afirma se identificar como menino e menina. Quando indagado se isso era algo que o preocupava, ele não hesita: “não, nunca”.
As roupas são um mix de coleções passadas criadas pelo designer na marca italiana. O posicionamento se destaca por vários sentidos, principalmente pela suspensão da produção num momento em que poucos podiam sair de casa para trabalhar e pela postura consciente de não inflar estoques e de reduzir a quantidade de mercadorias e novidades despejadas no mercado.
Toque e pessoalidade são qualidades inerentes à moda. Porém, de modo algum elas se resumem à passarela, à trilha sonora e a alguns modelos. Em sua marca própria, a JW Anderson, e na Loewe, grife espanhola na qual é diretor criativo, Jonathan Anderson enviou caixas cheias de retalhos de tecidos, pequenos bordados, papéis de carta, dobraduras, ilustrações e outros elementos para jornalistas e clientes. Ambas coleções apresentam roupas com formas e volumes arredondados e cortes circulares. A impressão é de um abraço ou envolvimento protetor e confortável. Tingimentos manuais, como o shibori, tressês de couro e tricôs mil ainda expõem o lado artesanal dos processos de costura e confecção. É a tactilidade em suas várias formas.
Durante as 12 horas da transmissão realizada pela Gucci, os minutos em que o diretor de criação Alessandro Michele explicou todo o processo criativo por trás da coleção foram os mais interessantes. Diferentemente da espera de um desfile presencial, assistir às pessoas organizando roupas em uma arara ou modelos à espera de sua vez de serem fotografados têm similaridade assustadora com a rotina tediosa da vida em quarentena.
Mais vale ouvir Michele explicar como esta coleção encerra a trilogia iniciada em fevereiro, com o desfile de inverno 2020. A imagem é aquela conhecida, com o mix de estilos e referências tão essencial ao trabalho do estilista à frente da Gucci. Continuam presentes as padronagens e cores dos anos 1970, as modelagens e referências renascentistas e os elementos lúdicos, quase infantis, como as estampas de personagens da Disney.
Durante a transmissão, quem vestia as roupas eram os estilistas e designers que as criaram. É como se Michele estivesse voltando todos os olhares para dentro. De um lado, o olhar para dentro do próprio ateliê, enaltecendo e reconhecendo o valor do trabalho de cada pessoa envolvida. Do outro, para o nosso interior emocional. Em um momento em que somos privados de contato exterior, a introspecção se torna compulsória. E isso muda como enxergamos e sentimos tudo.
Parecia tempos pré-pandemia: uma megalocação (no caso, o porto de Xangai), convidados sentados juntinhos e quase todos sem máscara. Assim foi o desfile de verão 2021 da Louis Vuitton, realizado na cidade chinesa no início de agosto. Estratégia de marketing bem pensada para reforçar as vendas numa das poucas regiões do mundo que já parece voltar à vida como ela era (se é que isso é possível) e um dos principais mercados de luxo do planeta.
Na passarela, o casting de modelos locais mostrou uma espécie de pot-pourri de tudo que o diretor artístico Virgil Abloh já fez na maison: os ternos clássicos com corte moderno, a alfaiataria desconstruída e recortada, os elementos do streetwear trabalhados de forma luxuosa e, claro, os logos e monogramas tão caros à marca e ao trabalho do designer. Com styling de Ibrahim Kamara (além da colaboração de vários artistas negros), a coleção carrega ainda uma infinidade de referências pessoais do estilista e da cultura negra. Os xadrezes psicodélicos, por exemplo, vieram do ska jamaicano combinado aos movimentos musicais negros da Inglaterra dos anos 1970 e 1980.
Tudo que se vê na passarela foi feito a partir da reciclagem e do reaproveitamento de tecidos em estoque, bem como de ideias e peças de coleções passadas que puderam ser reinterpretadas a partir do upcycling.
GUIA
DOS
DEZ
Ainda que pouco coesas em ideias e ambientadas num contexto de mundo bastante complexo (para não dizer caótico), as temporadas de resort 2021 e verão 2021 masculino apresentam caminhos e tendências bastante sintomáticos das mudanças pelas quais estamos passando. A seguir, listamos alguns dos principais pontos que definem a estação.
O rosa, principalmente em suas tonalidades mais claras e pastel, foi recorrente em praticamente todas as coleções de resort apresentadas nessa temporada. Suave e delicada por natureza, a cor se destaca quando aplicada em padronagens de alfaiataria, peças de cortes minimalista ou com detalhes despreocupados como uma boa barra desfiada. Pense em calma, mas de uma maneira prática e em tempos estridentes.
Esbanjar abundância ou qualquer tipo de excesso soa bastante alienado neste momento. Após um período de privações mil, surgem questionamentos sobre o que de fato precisamos, o que é essencial. Como resposta, muitas marcas optaram por reduzir decorações ao máximo em suas criações, limitando as roupas à mais pura funcionalidade.
Peças com detalhes utilitários, principalmente bolsos cargo bem salientes, marcaram presença em quase todas as coleções apresentadas nos últimos meses. Influência utilitária do streetwear, agora elas se combinam com itens de corte simples ou com elementos de alfaiataria para uma imagem híbrida entre sofisticação e praticidade.
Em tempos incertos é comum agarrar-se ao familiar. No caso da moda, esse comportamento se traduz em formas, estampas e padrões clássicos, como o xadrez (de vários tipos), o pied-de-poule e os cortes de alfaiataria. São imagens que comunicam ordem e organização. Tudo o que queremos em meio ao caos.
Dentro ou fora de casa, conforto é uma qualidade que dificilmente sairá de moda. Vem daí uma das principais apostas das coleções resort 2021: o vestidão longo e amplo. Adaptação de um modelo que já tinha status de hit, chega agora com modelagem ainda mais afastada do corpo. Nesse momento em que muitos viram suas vidas resumidas a sala, cozinha e quarto, roupas amplas, com caimento solto e completa liberdade de movimentos, se tornaram peça-chave.
Parte da desconstrução e nova representação masculina, o principal acessório para eles nesta temporada é a famosa it-bag. Bolsas em tamanho reduzido (não necessariamente micro), inspiradas em modelos que fizeram fama entre as mulheres, agora aparecem nas mãos e ombros deles.
Pense em calma e a primeira cor que vem em mente é o branco. O tom apareceu em diferentes formas: das versões minimalistas às com referências à natureza e elementos naturais, lisas ou reluzentes e também foscas e texturizadas com trabalho de crochê e renda.
O toque foi cancelado durante o período de isolamento social, o que fez aumentar nossa carência e desejo por peças confortáveis como os tricôs. Vem daí a vontade por roupas básicas, uma das principais trends da estação.
Peça-chave na moda masculina nesta estação, a blusa alongada (quase uma túnica) é uma versão sofisticada da boa e velha camiseta, com corte preciso, linhas puras e silhueta alongada.
Não estamos loucos e sabemos que dissemos há pouco que excessos não são bem-vindos. Porém, ninguém vive só de tons pastel, beges e brancos. Para momentos mais alegres e divertidos, peças 100% estampadas garantem animação e bom humor na medida certa (e ainda arrasam nas festinhas de Zoom).