Uma estética consolidada pelas periferias, cuja imagem de moda anda ao lado de gêneros como o funk, o trap e o grime, forma um visual high tech, ao som de sintetizador, que é um retrato potente de vivência da quebrada.

Concepção e edição de moda Suyane Ynaya
Texto Karolyn Andrade e Gabriel Monteiro
Foto Vivi Bacco
O "kit” (ou visual completo) tem óculos de modelo Juliet; boot (tênis) Oakley, além de bermuda Cyclone e camiseta “Lalá” (Lacoste). Os moleques usam boné de aba curva, escrito Gucci ou Tommy [Hilfiger]. Tem a turma da Nike, da Adidas, da Puma — cada uma com sua própria história, mas todas com suas paixões por peças utilitárias, esportivas e de performance. Tem ainda as marcas de luxo como Balenciaga, Versace e Louis Vuitton, ostentadas e/ou ressignificadas. E tem os acessórios, como os tênis mais limitados e as correntes de ouro. Se moda e música andam de mãos dadas, na quebrada as relações e interseções são ainda mais profundas e simbólicas. Roupa e sonoridade estão conectadas por experimentações tecnológicas, seja pelo visual high tech dos looks, seja pelo amplo uso de sintetizadores nos sons.

As belezas dialogam com origem, como quando as garotas usam unhas longas e os garotos vestem durag, a bandana que é parte importante da cultura de penteados — como ondas, tranças e dreadlocks, de tradições negras. O styling sai do cotidiano, do lifestyle. A pochete, a blusa amarrada transversalmente no torso, da mesma maneira que “o menor” empina o pipa. Como na música, a moda é agente vivo, sampleada com logos em réplicas e upcycling. Tudo isso brilha no fluxo, no baile, ao som de gêneros importados só que bastante adaptados aos formatos únicos do país, como o trap, o grime e principalmente os funks 150, brega e mandelão.
Daddy Groove
Fluxo é uma palavra boa para explicar como se movimenta essa estética, em forma de corrente. O músico Kyan, da Baixada Santista, por exemplo, se inspirou nas produções de outros MCs, e junto das ondas sonoras vieram também as visuais, como o boné de aba curva do MC Neguinho da Kaxeta (de tão seu, o item ficou conhecido como boné do NK). Essa maré de influência, que chega em Kyan e em outros meninos, leva junto a Lacoste e a Oakley, marcas que estouraram com o advento do funk ostentação, vertente que cita muita marca de roupa, de moto e de carro, para celebrar as conquistas dos artistas.

Kyan explica: “é por meio da música que vem o estilo”. Teve a época dos tênis Springblade, da Adidas, aquele momento em que todo mundo estava só pensando em usar Mizuno, e, quando a vontade passou, para ter o Vapormax, da Nike, de tecnologia diferente. “Na quebrada, as pessoas se influenciam entre si. Eu olhava para os meninos mais velhos, que olhavam para o amigo do irmão mais velho, que olhava para o conhecido músico ou para o conhecido jogador. Isso é bem forte, porque eles e o funk me fizeram pensar em moda”, explica o músico.

É assim que moda e música se movimentam, na base da identificação. “Tenho essa postura agressiva, mas sou bastante tímido. Quando vejo alguém usando algo só porque eu usei, fico ‘caramba, essa pessoa se espelhou em mim!’”, diz Kyan. “Então coloco nas rimas o que nós almejamos. Se você chegar na quebrada com um Air Jordan da Dior, ninguém vai ligar; mas se chegar com um 12 molas, todo mundo vai te achar chave”, conta ele, que canta em “Mandrake”: “Nike, Lacoste e Ap Vest [o colete Oakley], elas sentem atração com os menor de Juliet”.

O funk tem a sua origem vinculada ao soul e ao R&B norte-americano, mas desde que chegou ao Brasil nos anos 1970, assumiu uma trajetória própria. A versão brasileira se transformou no gênero nacional mais escutado internacionalmente. E seu histórico no país é importante para entender a amplitude de referências, seja no som, com a inclusão da bateria eletrônica do DJ Marlboro, seja na estética dos paredões do Furacão 2000 e das letras celebrando liberdade, sexualidade e estilo próprio, como as cantadas por Tati Quebra Barraco. “Sou Feia Mas Tô Na Moda” que o diga.

Só que o ritmo hoje está cheio de F5. Existe o brega funk, com influência do Nordeste; o mandelão, que é a cara do funk paulista; o 150 BPM, queridinho dos cariocas; além do consciente, sobre superação; o trap funk e o funk rave, que são os mais recentes e adorados na quebrada. Nomes como MC Menor MR, MC Paulin da Capital são expoentes, mas vale aqui destaque para o fenômeno MC Dricka, a rainha dos fluxos e um dos maiores símbolos de representatividade para as minas atualmente. Dricka contesta, em letra e visual, códigos tradicionais de feminilidade. Funkeira, segundo ela, usa o que quiser, não apenas top e shortinho.

Tem ainda o trap, um subgênero do hip-hop, que conta com batidas eletrônicas aceleradas e o uso de auto-tune. As rimas fortes falam da vivência na rua à ostentação de grifes e são marcadas por efeitos que distorcem as vozes, em cima de batidas graves. Essas são só algumas das características de um estilo que se destaca, sobretudo, pela experimentação. O gênero ganhou popularidade na última década, mas surgiu em Atlanta, nos Estados Unidos, na virada do milênio, e, no Brasil, explodiu depois de 2013, com nomes como Raffa Moreira, Sidoka, Matuê e o grupo Recayd Mob.

E não esqueçamos do grime, surgido na Inglaterra nos anos 2000, com estilo ainda mais puxado para a base eletrônica. O seu maior destaque é a batida por minuto acelerada, lá pela casa dos 140, o que muda a cadência da melodia e das rimas. A moda grime envolve o futebol, vinda da paixão inglesa pelo esporte. Assim como a paixão própria do Brasil pelo jogo, a música e o estilo se ampliam por aqui de um jeito só nosso. É muita camiseta de time, roupa larga e boot, mas tudo com um toque de cá. Na música, os principais expoentes são Fleezus, Febem e Thxuzz. Nas roupas, pense em sport style, com o tracksuit como uniforme e marcas como a The North Face colocadas sob holofotes.
Onnika, MC Dricka e MC Soffia

STREETWEAR À BRASILEIRA

“O funk domina as quebradas. Você não acorda com o galo cantando, acorda com o funk estourando”, explica MC Soffia, cantora influenciada não só por esse estilo, mas também pelo hip-hop e pelo trap. Soffia diz que a relação entre música, moda e periferia é algo que anda junto desde cedo. Ela mesma é apaixonada por boot desde pequena. O seu modelo queridinho e mais recente é um Nike 12 molas, mas lembra que, quando o seu primeiro dente caiu, acordou ao lado de dois modelos Air Force e pensou: “meu Deus, essa fada do dente vem premiada, mesmo”.

“Os maiores consumidores de Nike que eu conheço são da quebrada. O Mizuno é um tênis de corrida que só a quebrada soube valorizar. O meu primo mora com a mãe e comprou um tênis de mil reais, porque quer chegar sempre no melhor kit. Deveriam parar de criminalizar a cultura de quebrada, afinal é a gente que consome. A marca não quer uma pessoa da quebrada na loja, mas o valor alto das peças nunca foi um impeditivo para nós. Vejo muita gente chegando no baile com aquela Lacoste de abrir o espaço, sabe? Sai da frente, toca o mandelão, que o cara tá usando aquela Lacoste”, fala Soffia.

As periferias urbanas são o reflexo da desigualdade no país. “Todo mundo sabe que esses itens são caros, por isso eles viram ostentação na quebrada”, explica a DJ Peroli. Ela toca sets de trap e grime, além de ser cofundadora e residente do Projeto Perifa no Toque, plataforma de propagação de trabalhos de MCs e uma festa, em São Paulo. Peroli é também uma das idealizadoras da Festa Side, focada no gênero grime. A ostentação que a DJ comenta está na citação de músicas, no uso de marcas e na ressignificação de grifes de luxo.

São ligações constantemente vistas como reflexo de alienação, mas, na verdade, estão bem longe disso. A ostentação expressa indicação de status social e conversa com realidades que são excludentes, ora pelo próprio uso, ora pelo não uso. Ou seja, uma dinâmica de associação, indicando ascensão ou negação, deixando claro que é a quebrada quem dita. A música influencia, mas vale dizer que a ideia de validação são conceitos que marcam a realidade de moradores de periferias em outros aspectos. É um diálogo direto com a ideia de poder.

“E também quem não quer uma bolsinha da Prada, né?”, pergunta a DJ em tom de brincadeira. Peroli curte usar camiseta largona, bermuda ciclista, mas adora pesquisar e acompanhar marcas como a francesa Marine Serre e a polonesa MISBHV. “Parece que está imposto que moda de alto padrão não é para gente. Ao mesmo tempo as grifes sempre usam o que produzimos em seus desfiles. Aquilo não é para nós, mas é com os nossos artifícios”, ela comenta.
Parece que está imposto que moda de alto padrão não é para gente. Ao mesmo tempo, as grifes sempre usam o que produzimos em seus desfiles. Aquilo não é para nós, mas é com os nossos artifícios.
DJ Peroli
Parece que está imposto que moda de alto padrão não é para gente. Ao mesmo tempo, as grifes sempre usam o que produzimos em seus desfiles. Aquilo não é para nós, mas é com os nossos artifícios.
DJ Peroli
DJ Peroli e Menino Jazz
“O que mais tem é branco rico se apropriando de nossa cultura, estilo e identidade”, concorda o Menino Jazz, músico do bairro Ermelino Matarazzo, na zona leste de São Paulo. “Sabem que a gente tem estilo, sabem que a gente compra, que o 12 molas está aí no hype porque a gente trouxe ele de volta, e é a gente que dá grana para eles”, diz. O trapper aprendeu a cantar na igreja aos 7 anos, escreve desde os 12, gosta de A$ap Rocky, Nike Shox e de corrente de ouro, que “combina com a pele e aumenta a autoestima”. Autoestima, ou melhor, “afroestima”, é a maneira que encontrou de ir contra esse tipo de apropriação feita pela elite e compreender as potências criativas da periferia.

Jazz pensou em ser publicitário, mas virou modelo por influência do amigo Malcolm VL, que também modela. Tudo isso foi uma reconexão com a música e a base de seu fortalecimento. “O Malcolm me ensinou a ter afroestima, e, por isso, não tenho mais tanto problema com minha imagem. Foi um processo gigantesco. Ele, pretão com cabelo crespo, se vestindo bem, foi influência, e não inveja. Foi algo positivo, eu olhava para ele e queria aquilo para mim. Faço as waves [ondas no cabelo], que é um processo que demanda cuidado todo dia: precisa escovar, passar pomada, colocar a durag antes de dormir. Mas é um autocuidado que me faz bem. Hoje, tento passar essa referência para os outros — meus primos, meus amigos, pessoas pretas com pouca autoestima. Quero que elas se sintam bonitas e estilosas.”

Esse processo de construção de autoestima, com moda e música, também foi importante para a trapper Cristal. “Acredito que o trap traz uma ousadia para se jogar mais, experimentar mais, tanto em cores, quanto em peças e estilos. É uma inspiração para criar looks próprios, explorar o seu visual. Hoje, em vez de tentar me moldar, experimento e me permito muito mais do que antes. Os espaços que mudem para mim”, ela diz.

Esses espaços, diga-se de passagem, perdem muito em não mudar. “Se as marcas tivessem mais visão pensariam ‘OK, o funk domina o Brasil, vamos chamar esses artistas para divulgar mais os produtos’”, comenta MC Soffia, sobre como toda essa potência ainda não é completamente compreendida por quem não acompanha de dentro. “Os artistas pretos poderiam estar mais bem representados pelo simples fato de que o que a gente usa é o que a galera quer. É uma realidade que não tem como contrariar”, ela afirma.

Esse não reconhecimento cria um ciclo vicioso, problemático, que recai na falsa ideia de não pertencimento. Esses criativos não se enxergam valorizados em outros espaços além dos que eles próprios constroem. Isso tem impacto no estereótipo equivocado de que a periferia não produz moda. Uma perda, convenhamos. Entender a quebrada como agente ativo de moda é reconhecer uma moda de rua criada com características bastante próprias, além de uma moda nacional que se relaciona de fato com a cultura do país. Algo que não é feito, muito provavelmente, porque periferias, seus moradores e suas produções são frequentemente criminalizados.

“Nos menosprezam como se a nossa moda fosse marginalizada, mas esquecem que, anos depois, vão se vestir como a gente”, diz Juliana Schiezaro, do Jardim Damasceno, Brasilândia, zona norte de São Paulo. Juliana é conhecida como a rainha dos pisantes, por reformar tênis em sua marca, a From Ghetto, já com 11 anos. “Poderiam ser mais transparentes com a moda das periferias. Não só identificar potencial nela depois que as criações foram desenvolvidas aqui. Deem os devidos créditos. Soltam produtos com influência em cultura urbana, de favela; gente de classe alta compra e se exibe, como se fosse legal ser preto e de favela e não ser ao mesmo tempo. Por isso é importante falar de como somos apropriados para entender que o que você veste hoje e é hypado, há quatro anos foi o motivo de algum policial parar um moleque porque achou ele com estereótipo de bandido”, reflete. E dá uma saída: “Podiam entender a importância da moda para a periferia, tratando quem coleciona Oakley como conhecedor de moda, do mesmo jeito de quem coleciona Gucci.”
Menino Jazz
Beleza Ian Ribeiro
Produção de moda Jessica Kelly e Neguinho da Favela
Produção executiva Mariana Araújo
Câmera e montagem Vinicius Andrade
Assistente de fotografia Franklin Almeida
Assistente de produção executiva Isabela de Paula
Modelos MC Soffia, Menino Jazz, MC Dricka, Onnika, Peroli e Daddy Groove
Todos os looks, acervo da stylist
Joias, Skull