Diferentemente de Gal, Dina Maia, de 28 anos, não dançava profissionalmente até ser convidada para entrar na Zona. Criada sob a fé cristã, que podava os movimentos de seu corpo, Dina pôde viver os dois lados, plateia e palco, de uma das apresentações mais icônicas do grupo: Vênus Negra, um manual de como engolir o mundo. “No espetáculo, a gente convida algumas manas pretas e gordas para estarem no palco, e a Fabiana Pimenta me deu um banho de canela com açúcar, saí impactada, desobediente”, relembra a atriz paulistana. “Eu vi que a movimentação existia, era real — não era uma mulher [no palco], eram seis mulheres pretas e gordas. Comecei acompanhar as redes sociais de coletivos como Aparelha Luzia e Amem e, por lá, já namorava a Gal e a Didi de longe, era muito bonito ver essas mulheres dançando.” Na estreia do espetáculo, o Centro de Referência da Dança atingiu lotação máxima. Vênus Negra, um manual de como engolir o mundo é dividido por solos, logo, cada uma das integrantes tem seu espaço para narrar sua trajetória, experiência ou pensata, sempre se reportando a como o corpo negro gordo é lido como uma aberração e como essa leitura é violenta, fantasiosa, mentirosa e perversa.
“Saartjie Baartman foi uma mulher negra muito gorda que foi colocada em uma jaula, exposta, e a Zona Agbara tomou-a como base de pesquisa para conseguir dar voz a esse espetáculo. Vênus Negra, um manual de como engolir o mundo vem para denunciar a gordofobia e, para além disso, a ideia de nossos corpos como aberrações”, conta Dina, “Assistindo a Vênus Negra, um manual de como engolir o mundo foi a primeira vez que eu vi Zona Agbara no palco de pertinho. Quando vi a Fabi cantando música de infância — gorda, baleia, saco de areia, gorda, baleia, saco de areia,... — foi muito impressionante, porque ativa nossa memória emocional, a gente se recorda dos comentários gordofóbicos, a gente se aproxima disso de novo, até porque muitas vezes a gente busca fugas. Zona Agbara traz a grandiosidade que é um corpo gordo se movimentar, ver a Didi dançando é fenomenal, ela parece um elástico: quando eu a vi dançando, fazendo uma ponte, abrindo uma perna, eu percebi que é possível se movimentar.”
Didi é Rosângela Alves, de 39 anos. A trajetória dela com a dança vem desde jovem, pelo caminho tradicional, do balé clássico – portanto, mais intolerante, mais doloroso. “Eu tinha uma coreografia com uma rosa”, relembra. “A banca em que realizam as audições é em uma escola de elite de balé clássico, muito renomada. Quando eu chego falo que vou prestar DRT [realizar a prova para ter o registro profissional], me indicam que eu tenho que me arrumar e esperar em uma sala. ‘Rosângela, pode entrar.’ Uma sala enorme, um piso de madeira, coisa que não estava acostumada porque [onde dançava] era cimento batido. Cheguei lá observando o espaço, passando a coreografia na minha cabeça. ‘Rosângela, para que que você quer tirar o DRT?’ Muito nervosa, respondi: tenho a pretensão de participar de espetáculos de dança e preciso desse documento. Comecei — o resultado não sai na hora. As pessoas costumavam ficar muito emocionadas quando me viam dançar. Quando eu saí de dentro da sala, desabei. Chorei, chorei muito, muito mesmo. Meu amigo veio e me perguntou o que tinha acontecido. É muito cruel. Eu senti os olhares.”