Zona Agbara é um coletivo formado por mulheres que encontram na dança uma forma de se expressar, declarar amor a si próprias e, do corpo proibido, criar um paraíso particular.

Foto Pedro Gomes Napolinario
Concepção Pedro Camargo e Ísis Vergílio
Beleza Vale Saig
Styling Suyane Ynaya
Texto Thaís Regina
“Tempos difíceis exigem danças furiosas”, dispara Gal Martins, de 39 anos, idealizadora do Zona Agbara, coletivo artístico criado em 2016 que vem provocando reflexões a partir de suas poderosas performances. Agbara significa força e potência em iorubá. Zona é bagunça, mas também tem a ver com demarcação de espaço. A partir de sete mulheres, de sete narrativas singulares com dores comuns, um território transitório se forma e desafia duas máximas do estreito caminho aos palcos: que corpo se movimenta e, se não fosse magro, quem ia querer vê-lo dançar?

Em quatro anos de companhia, Zona Agbara carrega um selo inquestionável de seu sucesso: nunca tiveram uma plateia vazia. Com propostas instigantes, os espetáculos são experiências incrivelmente emocionais, nas quais as artistas se debruçam sobre a dor da mulher negra como um objeto de estudo e examinam essa ferida sem dó. Elas derrubam a muralha de indiferença e despem a mordaça do silêncio. Gal dança profissionalmente desde os 17 anos, mas a violência e a exclusão dos palcos remontam à infância, quando disse para a professora que queria participar da Festa da Primavera e ouviu que não podia, pois seu cabelo não fazia coque. Foi na dança afrobrasileira que as portas se abriram, e a artista começou uma sólida caminhada na produção e apresentação cultural. “Antes eu me nomeava como artista da dança, mas agora eu tenho me nomeado como artista e pensadora da dança. Artista preto e periférico cria a partir da ausência de algo. A Zona Agbara surge a partir da ausência de corpos gordos femininos na cidade — onde estão esses corpos, por que eles não ocupam a cadeia produtiva de dança no país?”, questiona.
Colar, Gansho. Anel, Flávia Madeira. Brincos, Gostou (dourado) e Paola Vilas.
Diferentemente de Gal, Dina Maia, de 28 anos, não dançava profissionalmente até ser convidada para entrar na Zona. Criada sob a fé cristã, que podava os movimentos de seu corpo, Dina pôde viver os dois lados, plateia e palco, de uma das apresentações mais icônicas do grupo: Vênus Negra, um manual de como engolir o mundo. “No espetáculo, a gente convida algumas manas pretas e gordas para estarem no palco, e a Fabiana Pimenta me deu um banho de canela com açúcar, saí impactada, desobediente”, relembra a atriz paulistana. “Eu vi que a movimentação existia, era real — não era uma mulher [no palco], eram seis mulheres pretas e gordas. Comecei acompanhar as redes sociais de coletivos como Aparelha Luzia e Amem e, por lá, já namorava a Gal e a Didi de longe, era muito bonito ver essas mulheres dançando.” Na estreia do espetáculo, o Centro de Referência da Dança atingiu lotação máxima. Vênus Negra, um manual de como engolir o mundo é dividido por solos, logo, cada uma das integrantes tem seu espaço para narrar sua trajetória, experiência ou pensata, sempre se reportando a como o corpo negro gordo é lido como uma aberração e como essa leitura é violenta, fantasiosa, mentirosa e perversa.

“Saartjie Baartman foi uma mulher negra muito gorda que foi colocada em uma jaula, exposta, e a Zona Agbara tomou-a como base de pesquisa para conseguir dar voz a esse espetáculo. Vênus Negra, um manual de como engolir o mundo vem para denunciar a gordofobia e, para além disso, a ideia de nossos corpos como aberrações”, conta Dina, “Assistindo a Vênus Negra, um manual de como engolir o mundo foi a primeira vez que eu vi Zona Agbara no palco de pertinho. Quando vi a Fabi cantando música de infância — gorda, baleia, saco de areia, gorda, baleia, saco de areia,... — foi muito impressionante, porque ativa nossa memória emocional, a gente se recorda dos comentários gordofóbicos, a gente se aproxima disso de novo, até porque muitas vezes a gente busca fugas. Zona Agbara traz a grandiosidade que é um corpo gordo se movimentar, ver a Didi dançando é fenomenal, ela parece um elástico: quando eu a vi dançando, fazendo uma ponte, abrindo uma perna, eu percebi que é possível se movimentar.”

Didi é Rosângela Alves, de 39 anos. A trajetória dela com a dança vem desde jovem, pelo caminho tradicional, do balé clássico – portanto, mais intolerante, mais doloroso. “Eu tinha uma coreografia com uma rosa”, relembra. “A banca em que realizam as audições é em uma escola de elite de balé clássico, muito renomada. Quando eu chego falo que vou prestar DRT [realizar a prova para ter o registro profissional], me indicam que eu tenho que me arrumar e esperar em uma sala. ‘Rosângela, pode entrar.’ Uma sala enorme, um piso de madeira, coisa que não estava acostumada porque [onde dançava] era cimento batido. Cheguei lá observando o espaço, passando a coreografia na minha cabeça. ‘Rosângela, para que que você quer tirar o DRT?’ Muito nervosa, respondi: tenho a pretensão de participar de espetáculos de dança e preciso desse documento. Comecei — o resultado não sai na hora. As pessoas costumavam ficar muito emocionadas quando me viam dançar. Quando eu saí de dentro da sala, desabei. Chorei, chorei muito, muito mesmo. Meu amigo veio e me perguntou o que tinha acontecido. É muito cruel. Eu senti os olhares.”
Anel, Gostou. Brinco, Flávia Madeira.
Rosângela é muito emocional e suas coreografias transbordam isso, em movimentos fluidos e leves. Ela saiu dessa experiência traumática com uma DRT provisória, que permite sua atuação como profissional por um ano. Basicamente, ela conseguiu uma chance. “Eu danço há 20 anos, mas de quatro anos para cá eu me encontrei”, afirma. Gal conheceu Didi em uma apresentação de dança na cidade natal dela, Itapecerica da Serra; Gal tinha saído da zona sul de São Paulo com sua Companhia Sansacroma, e todos ficaram fascinados com a performance de Didi. Zona Agbara ainda não existia, mas a ideia começava a rondar Gal, ela sentia uma nova fisgada quando encontrava artistas como si mesma, como Didi: excepcionais.

Ao mesmo tempo que existe o interesse e a validação do público, a trajetória da Zona Agbara já passou por muitas repressões e até por censura, que aconteceu com o segundo espetáculo do grupo, que aborda o encarceramento feminino. As provocações com a plateia e, especialmente, a nudez são os elementos mais polêmicos. Não é comum pensar em um corpo gordo nu desinibido. Assim, sem concessões, as artistas desafiam olhares receosos, pensamentos automáticos e preconceitos profundos. Mas, vale dizer, o nu não é em vão ou meramente pelo choque, trata-se de uma proposta de performance: quando não se pode dar uma outra forma à cena, quando o protagonista é o corpo, não há por que cobri-lo. Fora isso, quando foi a última vez que você celebrou suas gorduras? E por que não agora?

“Quando eu danço com a Zona Agbara é um ato de desobediência”, diz Gal. “Tudo que a sociedade faz é para a gente não ocupar esse espaço nessa revista. Eu danço para organizar meus ódios e para me sentir plena, liberta, curada desse sistema que é tão violento todos os dias.” O coletivo usa sua estética como forma de enfrentamento político, mas também como antídoto. Conversando com essas três mulheres, cada uma com uma perspectiva sobre dança tão única, o ponto comum é o acolhimento, a fé no amor preto, na admiração mútua, na coletividade de um povo e na força desse corpo sagrado, tão cheio de si. “Minha dança sempre foi muito intensa e muito entregue”, conta Didi. “Uma coisa que eu venho fazendo na quarentena é improvisar. Às vezes, estou improvisando em casa e, de repente, estou em prantos — porque meu corpo tem essa memória de muitos xingamentos enquanto subia no palco, muitas provações. Eu gosto muito do que faço. Em muitos momentos, falei que ia desistir, mas hoje eu tenho parceiras. Não me sinto sozinha mais na caminhada. Tenho pessoas que acreditam nessa dança, nesse corpo comigo. Dançar é sobreviver.”
Quando eu danço com a Zona Agbara é um ato de desobediência
Gal Martins
Quando eu danço com a Zona Agbara é um ato de desobediência
Gal Martins
Brincos, Flávia Madeira (à esq.), Minco (ao centro) e Paola Vilas (à dir.).
Produção de moda Fer Ferreira
Produção executiva Mariana Araújo
Assistentes de foto Eduardo Rodrigues e Flavio Lucas
Assistentes de beleza Cleiton Santos e Priscila Bispo
Assistente produção executiva Isabela de Paula
Modelos Coletivo Zona Agbara (Dina Maia, Evelyn Daisy, Gal Martins, Io Costa, Letícia Munhoz, Rosangela Alves e Thais Dias)