Dançando conforme a música
Alterando os padrões de influência e transformando a indústria fonográfica, as famosas coreografias do TikTok apontam um novo caminho para a dança.
Por Lelê Santhana
“Temos que dividir a dança como arte da dança como entretenimento.” Quem diz isso é Maitê Molnar, bailarina paulista que dança desde os 4 anos, coreógrafa da música “Deve Ser Horrível Dormir Sem Mim”, colaboração entre Manu Gavassi e Gloria Groove, lançada em agosto deste ano.
No clipe, Manu interpreta uma cineasta e roteirista residente em Nova York, que parece cultuar o conhecimento erudito e nutrir um sentimento de superioridade por desconhecer tudo o que alcança o mainstream. Contudo, ao resolver diversificar o seu trabalho, a personagem assume a direção de um videoclipe pop e adota os cinco passos entendidos por ela como a fórmula perfeita para um single de sucesso nos dias de hoje: um featuring, nudez, um boy gato, um carro e, por fim, uma dança que viralize no TikTok.
Apesar de ser uma bailarina com experiência em palcos grandiosos, Maitê explica que montar uma coreografia pensada para o TikTok, a convite de Manu Gavassi, não foi um problema: “Por causa da quarentena, as minhas aulas passaram a ser virtuais e, então, comecei a me basear preferencialmente em passos de mãos e braços para que os meus alunos conseguissem acompanhar no espaço de suas casas. E o TikTok também é sobre isso”, conta a paulista que, além de coreógrafa, é professora de dança contemporânea.
“Eu já conhecia o TikTok e, como profissional, consigo identificar o que é interessante para viralizar. É necessário que seja uma coreografia divertida e fácil de aprender. Então, juntei isso com a minha recente experiência de dançar enclausurada de frente para a webcam e cheguei ao resultado que a Manu aprovou de primeira”, comenta sobre o processo criativo da coreografia de “Deve Ser Horrível Dormir Sem Mim”. E deu certo. Na rede, a hashtag da música já ultrapassa 14,6 milhões de visualizações.
No TikTok, os desafios (conhecidos também como challenges) de dança são especialmente populares. Graças à grandiosa biblioteca de músicas oficialmente licenciadas, a criação de coreografias para elas se tornou inevitável, e hoje, apenas na hashtag #DanceChallenge, há mais de 12,6 bilhões de visualizações. Gravadas por influenciadores, bailarinos e anônimos, as danças podem ser feitas em espaços pequenos e costumam se basear na parte superior do corpo.
Historicamente, limitações espaciais sempre influenciaram a construção coreográfica. Se no balé, por exemplo, os limites de um palco instruem os movimentos corporais, agora, no TikTok, são os inúmeros limites demarcados pela tela de um celular na posição vertical. O dançarino do aplicativo, pela necessidade de se posicionar na câmera frontal do seu celular — provavelmente apoiado em algum objeto inusitado —, adapta as coreografias ao tempo máximo de um minuto, se movimenta do quadril para cima e praticamente não sai do lugar.
Os números dos desafios de dança no TikTok chamam a atenção. Uma mesma coreografia chega a ser repetida por milhões de usuários ao redor de todo o globo. Entretanto, para alguns, isso pode representar uma desvalorização dos profissionais da área, afinal, com tamanha proliferação, na maioria dos casos, se perde quem de fato montou aquela sequência de passos. “Assim como fotógrafos têm as suas fotos creditadas, essa prática também deveria ser aplicada quando alguém reproduz uma coreografia”, opina Maitê.
“Assim como fotógrafos têm as suas fotos creditadas, essa prática também deveria ser aplicada quando alguém reproduz uma coreografia”
Edson Damazzo, coreógrafo de Ludmilla, concorda: “Deveria ser obrigatório creditar. Isso é uma briga antiga do nosso sindicato, antes mesmo do TikTok existir, mas ainda é difícil controlar”. O carioca conta que hoje, trabalhando com a cantora, é muito bem valorizado e remunerado, mas sabe que essa ainda está longe de ser a realidade de todos os profissionais da área: “o bailarino é mão de obra barata. Aqui no Brasil, isso é universal e virou um costume de muitos e muitos anos. Só agora a gente tá colocando a cara para brigar por isso”, comenta.
Quanto ao aplicativo, Edson destaca como muitos influenciadores levam a fama por coreografias que não foram feitas por eles, evidenciando ainda mais a desvalorização do segmento. Um dos casos mais populares da rede é o de Jalaiah Harmon, jovem bailarina estadunidense negra, de 15 anos. Criadora da coreografia Renegade, seus passos chegaram a perfis de pessoas com enorme número de seguidores, que viralizaram sua dança, mas não seu nome.
“Ter um TikTok de dança não significa que você é um bailarino. A gente tem que aprender a diferenciar. Dançarino qualquer um pode ser, basta você ter ritmo e gostar do que está fazendo. Mas bailarino é formação, existe uma base didática e uma grande programação a ser cumprida até que você chegue a esse nível”, explica Edson.
Maitê, por sua vez, ressalta que enxerga no TikTok um espaço de dança como entretenimento, e não como arte. “A dança como arte é sobre produção de conhecimento, é sobre expressão humana. Ela cumpre funções sociais, aciona formas de olhar para o mundo, sacode certezas e, por isso que, muitas vezes, pode ser tão indigesta. Na maioria dos casos, não é isso que vemos no app”, alerta.
A paulista, entretanto, faz questão de frisar que isso não o faz menor e destaca os benefícios transmitidos pelas danças do TikTok. “Mover o corpo, independentemente de onde e para que, é muito potente. É importante que vivamos a dança. Mesmo sendo com o intuito de entretenimento. Por meio da plataforma, pessoas podem pausar, prestar atenção nos seus movimentos, passar a ter um contato maior com o seu corpo e entender como dançar faz bem”, constata Maitê.
“Mover o corpo, independentemente de onde e para que, é muito potente. É importante que vivamos a dança.”
E esse ponto de partida ganhou força na quarentena. Com as academias fechadas, muitos viram nas danças do TikTok uma forma de continuar se exercitando. Além de manterem a saúde em dia, perceberam também como essa pode ser uma experiência divertida e leve, representando um intervalo das notícias angustiantes e um momento de conexão com o seu corpo e mente. Como os passos coreográficos da rede não exigem um alto nível de habilidade, ela fez com que houvesse um desprendimento dos receios que, para alguns, envolvem a dança.
Para Maitê, se movimentar ritmicamente faz parte da natureza humana: “um bebê pode ainda não saber falar, mas já sabe movimentar o corpo”. A bailarina acredita que, se ao longo da infância e da adolescência isso não continuar sendo estimulado, barreiras podem ser criadas e mais tarde, possivelmente, essa pessoa se tornará tímida e insegura com a dança. As coreografias do TikTok, contudo, soam como um convite para que, entre as paredes do seu quarto, as pessoas se sintam à vontade e livre de julgamentos.
A influência na indústria da música
As coreografias do TikTok são embaladas pelas mais diversas músicas, mas dá para perceber alguns padrões entre as que viralizam. Geralmente, os TikTokers se identificam com as que evocam uma batida forte para a mudança de movimentos e que são fáceis de cantar. Um dos maiores e primeiros fenômenos da plataforma é “Old Town Road”, de Lil Nas X. O rapper de 21 anos subiu a música na biblioteca da rede e, por quatro meses, a promoveu como um meme. Não demorou para que o #YeehawChallenge dominasse o TikTok e todos estivessem vestidos de cowboys.
Lil Nas X é um dos nomes à frente das mudanças que estão sendo promovidas pelo TikTok na indústria musical. O artista produz as suas músicas já tendo em mente as estratégias necessárias para que elas deem certo na plataforma. Isso envolve inserções de batidas que fluam na criação de coreografias, uma possível linguagem de meme e um refrão tático para posteriormente inserir na biblioteca do aplicativo. Drake também se rendeu e durante a quarentena lançou a música “Toosie Slide”, que tem em sua letra, literalmente, um passo a passo para a coreografia.
Doja Cat, com “Say So”, e Benee, com “Supalonely” são mais alguns casos surpreendentes. As duas jovens, com músicas extremamente vibrantes, fazem sucesso entre os TikTokers e elevam a estética da felicidade, chamada cottagecore, tão presente na plataforma. Há ainda hits que nascem na rede, como “Dance Monkey” e “Sunday Best”, e acabam sendo reconhecidos apenas pelos 30 segundos presentes na biblioteca do TikTok.
Estudiosos do mercado fonográfico apontam que, nos últimos cinco anos, a média de tempo das músicas caiu em 20 segundos e, com o fenômeno do TikTok, esse movimento tende a acelerar ainda mais. Há ainda quem acredite que, em breve, muitos artistas vão lançar músicas de apenas 15 ou 30 segundos exclusivas para a rede. E independentemente de essas previsões se tornarem realidade ou não, inquestionavelmente, esse novo momento já está agitando as gravadoras e as produtoras musicais.
Nos últimos cinco anos, a média de tempo das músicas caiu em 20 segundos e, com o fenômeno do TikTok, esse movimento tende a acelerar ainda mais.
A influenciadora e dançarina Ramana Borba, que entrou no TikTok em fevereiro deste ano e hoje, poucos meses depois, acumula mais de um milhão de seguidores na rede, conta que esse movimento também se acende no Brasil e, hoje, com o tamanho da influência na plataforma, é um dos nomes a que as produtoras estão atentas: “Os cantores começaram a perceber como o TikTok consegue alavancar várias músicas. Então, passei a ser muito contratada por gravadoras para reproduzir um challenge ou para criar uma coreografia minha que viralize”.
Coreografias sempre foram essenciais para o universo pop, contudo, com a explosão da plataforma, passos de dança passaram a ser criados especificamente para colaborar no sucesso de singles dentro do TikTok. “Inúmeras músicas no mercado são fracas ou os seus clipes não são bons, e foram as coreografias as responsáveis pela viralização. Isso não acontece sempre, mas é um fato. A dança tem esse poder. Se, então, a música, o clipe e a coreografia forem bons, o sucesso é certo”, garante Edson Damazzo.
O coreógrafo comenta ainda que, independentemente do seu gosto pessoal, o TikTok acaba tendo influência direta no processo criativo das coreografias feitas para Ludmilla: “Se agora as pessoas estão no aplicativo, é necessário se adaptar para chegar em mais gente”. Entretanto, pondera: “Penso na plataforma para o refrão, para que o single tenha alguma marca forte e fácil de reproduzir. Porém, não consigo me basear no TikTok para as coreografias completas de shows, por exemplo. Acabaria caindo no lugar comum e chegaria até a ficar bobo”.
Como a moda está se adaptando
Na indústria da moda, a plataforma também já ganha atenção. Em fevereiro deste ano, a Prada convidou Charli D’Amelio que, aos 16 anos, é a TikToker mais seguida do mundo, com mais de 85 milhões de seguidores, para uma série de ações em torno da coleção de inverno 2020. A dançarina, além de produzir vídeos para o TikTok no desfile da marca italiana, também foi acompanhada pela etiqueta ao longo de sua viagem por Milão, rendendo conteúdos para as redes sociais da Prada.
A Celine, por sua vez, não foi tão literal a ponto de criar uma coreografia, mas fez parceria com TikTokers que divulgaram sua coleção masculina que foi, exatamente, inspirada no estilo desses jovens. O desfile, gravado em uma pista de automobilismo, foi postado em vídeos curtos na conta da marca e repetia o refrão da música “They Call Me Tiago”, como se estivéssemos assistindo a um loop eterno na timeline.
A Gucci também realizou uma produção pensada para o TikTok. Intitulada Accidental Influencer, a campanha consistiu no encontro de pessoas extremamente semelhantes, em situações cotidianas, atuando passos coreográficos despretensiosos. Os vídeos podem ser entendidos como uma sátira às reproduções massificadas e estéticas repetitivas que ganham vida nas mídias sociais. A crítica, contudo, se dá dentro de conteúdos publicados no próprio TikTok, plataforma que, como uma rede social, em certo nível colabora para a continuação das infinitas reproduções. Dançar conforme a música nunca foi tão real. E agora, de forma literal.
Crescimento na quarentena
A história do TikTok quebra as expectativas dos contos de fadas que originaram algumas das principais mídias sociais. O império não foi construído por amigos que tiveram uma ideia brilhante no dormitório da faculdade ou por algum jovem prodígio, mas sim pela fusão estratégica de diferentes redes já existentes.
Em 2014, foi lançado em Xangai o Musical.ly, aplicativo que propunha uma brincadeira performática por meio de uma espécie de playback, permitindo que o usuário sincronizasse os movimentos do lábio com diferentes músicas de fundo. Paralelamente, em 2016, a empresa de tecnologia chinesa ByteDance introduziu ao mercado um serviço semelhante, chamado Douyin.
A fusão entre os apps se deu dois anos depois, em 2018, quando a ByteDance, considerada a startup mais valiosa do mundo, propôs a expansão global do aplicativo e, para esse novo momento, mudaria o nome da rede de Douyin para TikTok fora da China. Ainda existia, contudo, a concorrente, que poderia representar um empecilho para o sucesso deste grande passo, e então a ByteDance comprou o Musical.ly em um acordo de US$ 1 bilhão.
Desde então, o TikTok veio vindo em uma crescente impressionante, mas foi durante o período de isolamento social que aconteceu o que se entende como turning point — o que incomodou até Donald Trump, que está em uma verdadeira batalha para tirar o aplicativo do seu país caso ele não seja adquirido por uma empresa estadunidense.
Diante do momento tão angustiante que a pandemia provocou, é possível afirmar que a rede de vídeos foi a responsável pela descontração de muitas famílias. Assim, estourou a bolha da Geração Z, que até então dominava o aplicativo, e passou a ser ocupada também por usuários de diferentes idades e grupos demográficos.
O entretenimento proposto foi um fator essencial para que a rede tenha liderado a corrida das mídias sociais ao longo da quarentena. Tendo a dança, a música e o humor como principais pilares de conteúdo, o aplicativo foi como um alívio cômico em meio à crise. “Temos observado o quanto as pessoas estão unidas na nossa plataforma e estamos gratos por fazer parte do cotidiano dos brasileiros, especialmente durante este tempo desafiador”, afirmou Rodrigo Barbosa, gerente de comunidade do TikTok, em entrevista à ELLE.
Ao contrário do Instagram, onde publica-se fotos cotidianas, e do Twitter, que abre espaço para devaneios aleatórios, no TikTok, todo e qualquer usuário torna-se um potencial criador de conteúdo. Por meio de uma infinidade de recursos, filtros de realidade aumentada, ferramentas de edição e uma enorme biblioteca de músicas, o exercício da criatividade é constante, movimentando ideias e ocupando o tempo.
Se o TikToker, como o usuário do aplicativo é apelidado, tiver sorte, pode ainda ter grandes chances de se tornar viral. Essa é uma grande parte do fascínio em torno da rede: você não precisa colecionar milhões de seguidores para ter um amplo alcance. “A curadoria de recomendações de vídeo é personalizada para cada usuário, com base em suas preferências particulares. Isso garante que os usuários recebam uma experiência atraente e sem esforço, além de ajudar nossos criadores, populares ou (ainda) não, a serem descobertos por públicos novos e globais”, assegura Rodrigo.
Estes “algoritmos democráticos” estão promovendo um novo funcionamento de influência e alterando os padrões de conexão com o público. O porta-voz confirma: “Os conteúdos que tendem a ter melhor desempenho no app são os criativos e envolventes. A distribuição orgânica permite que alcancem uma audiência ampla e variada. Isso aumenta ainda mais a relevância dos criadores para um público diversificado, transformando sua influência e levando-os a aproximar suas relações com os usuários”.
Quer entrar na dança?
No Brasil, estas foram algumas das músicas mais reproduzidas na plataforma no último mês:
Dream Girl - Ir Sais
Desce pro play - Anitta, Mc Zaac, Tyga
Vai ter que aguentar - Mc Don Juan, Maiara e Maraísa
Se essa vida fosse um filme - Giulia Be
Oh Juliana - Mc Niack
Coño - Puri