Strike a Pose

Há 150 anos, a cultura ballroom redefiniu os conceitos de família por meio de suas houses, e usou a dança para apresentar mundos possíveis. Em um cenário cada dia mais complexo, a força dessa comunidade se mostra ainda mais necessária.

Por Ísis Vergílio

Direção e edição de vídeo KVPA

Foto Tinho Sousa

Beleza Mari Kato

Edição de moda Yumi Kurita

Concepção Suyane Ynaya e Ísis Vergílio

Teve Malcolm McLaren, Madonna, o documentário Paris Is Burning (1990) e, mais recentemente, as séries Pose e Legendary. Antes de tudo isso, porém, teve Crystal LaBeija. Na década de 1960, ao fundar a House of LaBeija, ela foi pioneira ao criar as bases estruturais do que são hoje as houses e famílias da comunidade ballroom. O filme The Queen (1968) documenta o momento exato em que Crystal se revolta com o resultado de um concurso de drag queens e dá início a um levante junto a outras trans, travestis e drags negras. Começava ali todo um movimento por maior reconhecimento e possibilidades dentro da comunidade LGBTQIA+.

“A comunidade ballroom tem uma trajetória de 150 anos, começando com uma ideia de fraternidade e performance de homens (então, identificados como tais), que se vestiam de mulher e se encontravam em bailes de máscaras”, relata Félix Pimenta Zion, pesquisadore, pai e fundadore da Kiki Casa de Pimentas e também pai da House of Zion – Capítulo Brasil.

"O movimento artístico Harlem Renaissance aconteceu aproximadamente entre 1919 e 1935 e foi responsável por estabelecer novas tendências não só na literatura e na música negra, mas na política. Tudo isso teve reflexo direto na vida noturna e nas festas da época. Nesse ambiente, surgem os Drag Balls, que deram origem, anos depois, à cultura ballroom como a conhecemos hoje”, explica Flip Couto, diretor executivo da Aliança Pró-Saúde da População Negra, idealizador do Coletivo Amem e um dos principais produtores de ballroom em São Paulo.


"Pensando na importância da comunidade ballroom, ela vem há anos resistindo e construindo novas narrativas e perspectivas pensadas por pessoas trans, negras e corpos dissidentes"

Félix Pimenta

"Pensando na importância da comunidade ballroom, ela vem há anos resistindo e construindo novas narrativas e perspectivas pensadas por pessoas trans, negras e corpos dissidentes"

Félix Pimenta


A partir dos anos 1970, outras casas começaram a ser formadas por drags, trans e travestis negras e latinas. Para entender melhor, cada casa é comandada por uma mãe ou pai, responsável por cuidar de seus filhos e pela preparação para cada novo ball. O ball, por sua vez, é o grande encontro realizado pela comunidade ballroom onde as famílias, conhecidas como houses, se encontram e se enfrentam para conquistar os Grand Prizes. Há um número enorme de categorias dentro dos balls: face, vogue performance, runway, hands performance, best dressed, sex siren e realness são algumas delas.

Acolhimento, suporte e apoio são palavras-chave dentro dessa cultura. É o que relata Biel Lima, imperatriz da Kiki House of Mutatis e filhe da House of Zion, sobre a comunidade ballroom em São Paulo: “cada house costuma reunir seus membros para conversas sobre temas diversos, sempre com o princípio do acolhimento e afeto. Algumas vezes, acontecem encontros de houses para diálogos pontuais”.

Não à toa, a organização comunitária da cultura ballroom teve papel fundamental no enfrentamento à epidemia da aids e na construção de políticas de prevenção ao HIV. No fim da década de 1980, a comunidade ballroom foi fortemente impactada pela epidemia da aids, com números alarmantes de mortes em decorrência do vírus e também com o alto índice de novas infecções por HIV. Diante dessa problemática, lideranças da comunidade, como Avis Pendavis, Hector Xtravaganza e Derrick Ebony, criaram, em 1990, o “Latex Project” e buscaram ajuda da Gay Men’s Health Crisis (GMHC), organização fundada em 1982 pelo ativista Larry Kramer, com a missão de acabar com a epidemia de aids. Kramer também fundou o ACT UP, importante grupo de ativistas por direitos de pessoas vivendo com HIV.


A comunidade é um organismo vivo em constante movimento, ela é expansiva, potente e sua força está intrinsecamente ligada às conexões que são estabelecidas entre os personagens que integram essa rede.

A comunidade é um organismo vivo em constante movimento, ela é expansiva, potente e sua força está intrinsecamente ligada às conexões que são estabelecidas entre os personagens que integram essa rede.


STRIKE A POSE

Dentro da cultura ballroom, é tradicional homenagear grifes e grandes estilistas. Muitas das casas, aliás, foram batizadas em referência a marcas de luxo — a House of Mugler, a House of Saint Laurent e a House of Dior. Dessa proximidade e fascínio pela moda, surge uma das danças mais famosas da cultura ballroom: o voguing.

Sua história é a seguinte: Paris Dupree, figura lendária da ballroom, estava em uma festa quando tirou de sua bolsa um exemplar da revista Vogue e começou a dançar reproduzindo as poses das modelos no ritmo da música. Aquele momento — apoteótico — se provou extremamente influente e, pouco tempo depois, em toda festa ou ball, havia uma legião de pessoas imitando poses vistas em editoriais de moda.

Na virada da década de 1980 para 1990, o voguing já tomava contornos pop. Era possível identificar o estilo na movimentação dos bailarinos que atuavam nos videoclipes de Alright (1989), de Janet Jackson; em Deep In Vogue (1989), de Malcolm McLaren — The Bootzilla Orchestra; Come Into My House (1989), de Queen Latifah; e Vogue (1990), de Madonna, responsável por uma das contribuições mais significativas para a popularização da dança.


BAILE EM COMUNIDADE

"Pensando na importância da comunidade ballroom, ela vem há anos resistindo e construindo novas narrativas e perspectivas pensadas por pessoas trans, negras e corpos dissidentes", diz Félix. A comunidade é um organismo vivo em constante movimento, ela é expansiva, potente e sua força está intrinsecamente ligada às conexões que são estabelecidas entre os personagens que integram essa rede. O senso de coletividade está no DNA de todos que compõem esse organismo e o coração da comunidade são todes que contribuem com sua pulsação.

Logo no início de Paris is Burning, a legendary Pepper Labeija diz: "É importante para mim ser mãe porque há tantas crianças que eu tenho de cuidar, embora elas não me ouçam e rejeitem minha autoridade. Ainda assim, acho que governo bem. Elas gostam de mim, sou uma das mais populares, estive aqui por duas décadas reinando. Eu tenho mais prêmios que todo o resto."

O maior prêmio de lendas como Pepper e Crystal Labeija, Willi Ninja, Vênus Xtravaganza e outras tantas, porém, é a contribuição imaterial para a sociedade. Elas ampliaram as noções de família em tempos amargos de constantes violações de direitos humanos. Como disse Jonovia Chase, "a comunidade ballroom não é um mundo de fantasias, é um mundo possível reimaginado".

Entenda como a cultura ballrom se desenvolveu no Brasil na próxima matéria.

GLOSSÁRIO:

Balls: São os encontros e as competições em que há as disputas, divididas em categorias, para ganhar o grande prêmio da noite, conhecido como Grand Prize.

Cena Kiki: é uma cena mais jovem, que começa no intuito de fazer uma versão mais divertida e acessível da cena mainstream. Kiki vem de divertido, engraçado. A cena Kiki segue basicamente as regras e as estruturas da mainstream, funcionando de forma mais rápida e mais maleável no sentido de poder criar uma ball ou cena. Para você abrir um capítulo da House mainstream, você precisa de um contato maior e muita credibilidade. Um aval de lá da House Icônica

Cena mainstream: Cena composta das casas originárias como House of LaBeija, House of Ninja, House of Xtravaganza, House of Zion.

Houses/Casas: As houses são como famílias dentro da comunidade. São responsáveis por organizar e gerenciar todos os filhos, filhas e filhes com o suporte das Mother’s e Father’s (Mães, Pais e Paes) participantes dessa cultura. Eles se organizam representar suas casas nas balls. Para criar uma casa é preciso ter anos de experiência.

Icon/Ícone: O Icon tem o reconhecimento de 20 anos, talvez 15 anos, dependendo do reconhecimento que as pessoas dão a ele na cena. De qualquer forma, para se tornar um Ícone, é preciso ter, realmente, alguns anos na cena. Isso vale para o legendary não somente ser reconhecido em sua região, mas ser conhecido na cena, em outras regiões e hoje, podemos dizer, que no mundo todo. Hector Xtravaganza, Mother Beautiful Zion, Leiomy, Pony Zion são exemplos de Ícones. Resumidamente, o Ícone tem o reconhecimento da cena toda para além da sua casa, e levam o nome da ballroom a outro nível.

Legendary/Lendário: Para se tornar uma Legendary, você precisa contribuir na cena por 10 anos. Caso você não tenha muitos prêmios, mas tenha reconhecimento e contribuições significativas, pode alcançar título. É necessário ter marcado a cena com muitos momentos lendários e, também, ter um bom tempo de caminhada na ballroom. Uma pessoa lendária tem uma assinatura, um movimento que ela fez primeiro e que todo mundo reproduz.

Mother's e Father's (mães, pais e paes): São responsáveis por organizar a sua Casa e fazer com que os filhos sejam motivados a representar suas casas dentro das competições.

Pioneiros: Esse é o primeiro reconhecimento dentro da comunidade ballroom. A cena basicamente é organizada pelos pioneiros. Quando a gente fala de Crystal LaBeija, Paris Dupree, Pepper LaBeija estamos falando de pessoas que contribuíram de forma grandiosa dentro da cena para estabelecer a comunidade. Não existem só elas, podem ter também as primeiras pessoas que caminharam, introduziram as questões de runaway, os primeiros trans masculinos e os primeiros voguers, como Willi Ninja.

Star/Estrela: A estrela é alguém que tem alguns destaques importantes, seu nome já circula dentro da cena, então ela é uma possível candidata ao título de Legendary, faltando apenas algum feito, como conquistas, números de grand prizes ou momentos lendários.

Statement: É alguém que está na cena há menos de cinco anos construindo e caminhando, mas não alcançou o status de estrela pois "falta algo pra ela", ou seja, momentos importantes e significativos.


CRÉDITOS NA ORDEM DE APARIÇÃO:

Natasha Olubusayo usa macaquinho Rodrigo Evangelista, macacão Cecília Growman, brincos Eduardo Caires e luvas M. Tossin

Félix Pimenta Zion usa macacão Estudio Traça, harness strass Eduardo Caires, óculos Rebel Glass e botas Érica Mello

Cunanny 007 usa vestido Rodrigo Evangelista, brincos M. Tossin, luvas Emana Festival Clothes e botas acervo da stylist

Félix Pimenta Zion usa casaco Issac Silva, calça David Lee, camisa Irrita e sapato Érica Mello

Cunanny 007 usa viseira Rebel Glass, macacão Paeteh, harness Lucas Regal e bota acervo da stylist

Brunessa Candace Zion Loppez usa capa Rober Dognani para Das Haus, macaquinho Ackon, harness strass e brinco Eduardo Caires, óculos Rebel Glass e sapato acervo da modelo

Brunessa Candace Zion Loppez usa casaco Ackon, lenço como blusa acervo da stylist, saia Hot Pink Wear, óculos Rebel Glass, brincos M. Tossin, meia Lupo e sapato Érica Mello

Natasha Olubusayo usa conjunto Cecilia Growman, tiara Matilda, brinco M. Tossin, óculos Rebel Glass, meias Calzedonia e sandália Santa Lolla

Puri Yaguarete usa camisa Bispo dos Anjos, calça Paeteh e bota Lucas Regal



Direção de fotografia vídeo Léo Kawabe
Direção de produção vídeo André Bernardes
Produção de moda Giovanna Gobbi
Produção executiva Mayra Dias
Finalização de áudio Compasso Coolab
Assistente de produção de moda Leopoldo Mendonça
Assistentes de beleza Andrey Batista e Carlaxane com produtos Nars
Assistente de foto Isabela Marazzi
Assistente de produção executiva Isabela de Paula