O ano de Malía
Viagem cancelada, álbum adiado, shows suspensos? Ela não se abala. Às vésperas de completar 22 anos, a cantora lança novos singles com influências que vão do rap à MPB, resgata a infância na Cidade de Deus e se firma como um dos nomes mais quentes do pop nacional.
Direção de vídeo Mauricio Kessler e Lucas Neves
Fotos Eber Figueira
Videoarte Caco Neves
Edição de moda Marcell Maia
Texto Marina Santa Clara
A cantora Malía entrou em 2020 com uma expectativa: este seria o seu ano. Vinha de um 2019 que lhe rendeu uma apresentação no México (a primeira fora do Brasil), um dueto com Alcione, músicas em novelas da Globo e uma elogiada estreia no Rock in Rio. Começava a preparar um novo disco, que gravaria em Los Angeles, em sua primeira viagem aos Estados Unidos, sob a produção do renomado Mario Caldato. Em março, literalmente com as malas prontas, os planos foram atropelados pela pandemia.
O álbum, agora previsto para fevereiro do ano que vem, será finalizado no Rio, e o trabalho com Caldato vem acontecendo à distância. Quase tudo mudou. Quase. “Continuo achando que este é o meu ano. Ainda não acabou e tem muita coisa acontecendo. Sou uma pessoa muito positiva e, mesmo com todo o caos, no meio da loucura, as coisas vão se encaixando”, diz.
Em julho e setembro, respectivamente, colocou na rua os singles “Flow” e “Mexe”. Juntos, os clipes já acumulam 2,4 milhões de views no YouTube. No último dia 13, lançou “Kimbala”, com o rapper BK, e fecha o ano com outra faixa inédita em dezembro. “Por mais que tenha existido esse break, foi um ano muito positivo. A gente se alinhou, se reposicionou. E surtou também. É difícil mudar todos os planos. Mas, com certeza, tudo que a gente tem hoje é muito mais concreto do que o que tínhamos antes. Eu sempre falo que, se a gente não está preparado para perder algo, não está preparado para ganhar. Eu sei exatamente o que eu quero.”
Hoje uma das principais apostas do pop nacional, ela quer, é claro, voar alto, mas se preocupa em saber sempre onde está o chão. E isso significa compreender o próprio ofício para além de cantar. “Quando você faz música naturalmente, é difícil entender isso como um trabalho, porque é uma coisa que você ama. Eu sempre fiz música, a vida inteira, mesmo estudando, tendo que arrumar a casa. Quando é que isso se torna trabalho? Sempre que eu podia, antes da pandemia, eu ia à gravadora. Da última vez, fiquei lá o dia inteiro. Porque eu queria entender quem faz o quê”, diz.
Aos 21 anos, acostumada a ver as pessoas reagirem com surpresa à sua maturidade e suas reflexões ponderadas, dá crédito aos pais por um lado. Mas lembra que uma experiência desconfortável na adolescência também a ensinou. Malía foi bolsista em uma escola particular que ficava a duas horas de sua casa. “O espaço físico era incrível, mas a escola não tinha uma estrutura que fizesse com que a gente se sentisse confortável para absorver aquilo. Era bem complicado, tóxico em vários níveis, questões de racismo. Mas fez com que eu aprendesse muita coisa. Eu me sinto extremamente profissional. Eu tenho certeza de que todas as regras, essa estrutura ácida do colégio, me trouxeram também uma postura. Fizeram com que eu criasse uma aliança muito grande com o que eu achava, valorizasse muito a minha perspectiva. Óbvio que tem uma educação em casa, que a minha mãe sempre achou importante que eu soubesse quem eu era, o valor do meu Brasil e de quem eu sou, o que eu tenho.”
O novo disco também orbita nessa referência afetiva, conta. “Eu escolhi falar sobre uma coisa específica, pessoal. Vou falar sobre mim, a minha casa, o Brasil, minha posição no mundo e isso também é falar sobre as mulheres, enfim, diversas pessoas que podem ser representadas em mim.” Resgatar suas memórias na Cidade de Deus, favela da Zona Oeste do Rio onde nasceu e foi criada com o irmão, a mãe, manicure, e o pai, mecânico (já falecido), se traduz em relembrar os tempos em que suas amigas ainda a chamavam no portão, gritando por Isadora. Nas caixas de som construídas pelo pai, ecoava a MPB de Elis Regina, Chico Buarque, João Bosco, Gal Costa e seu ídolo máximo, Djavan, que carrega como principal influência até hoje.
O gênero que dá o tom do novo projeto é o que ela batizou de TrapCal, algo como um trap tropical. Na prática, conta, está mais para uma mistura de novos elementos com toda essa bagagem musical. “A música sempre foi uma coisa levada muito a sério na minha família. A minha mãe conta que, quando tinha 9 anos, fez aula de piano e guarda até hoje o caderno. E ela sempre fala sobre isso, porque tem um respeito muito grande pela música. Eu, por exemplo, não canto música do Djavan no meu show. Eu não canto música dele assim aleatoriamente. Eu sou uma das pessoas que mais fazem releituras. Mas tem todo um respeito. Se não acho que estou pronta, não vou fazer”, diz.
E foi com as releituras, ainda adolescente, que viralizou na internet em vídeos caseiros ao lado do irmão, chamando a atenção do mercado musical. Dessa época, guarda também o início de uma relação quase tão estreita quanto a que estabeleceu com a música. Reciclando peças que ganhava das tias, apaixonou-se pela moda. “Hoje, do nada, descubro que isso é upcycling. Estou súper na tendência”, diz aos risos. Tendência que nasceu da necessidade. “Eu sempre procurei entender o meu contexto e abraçá-lo. Não tem como eu me sentir reprimida porque minha vida é essa e não do jeito que eu quero. Essa é a roupa que você tem. Vou fazer o quê? Vou ter que usar, vou entender qual é a beleza que tem nisso. Sem falar que a gente naturaliza coisas que são completamente antinaturais. Tipo em que momento a gente entendeu que tem que ter roupa que acabou de sair da passarela? É inacessível. Estar sempre aprendendo a querer ser e ter o que a gente não é, não tem... Em que momento a gente vai viver o bom de ser a gente?”, questiona.
Aos 18 anos, Malía se viu entre o fim do ensino médio, com uma “descrença total” no meio acadêmico após a experiência ruim da escola, e certa pressão da mãe para que escolhesse uma faculdade. “Mas ela sempre apoiou, esteve em todos os festivais de música em que eu me inscrevi. Minha mãe gostaria muito que eu fizesse uma faculdade porque ela tinha medo de a carreira na música não vingar, mas eu falava: ‘Relaxa, vou entrar em uma gravadora’. E ela respondia: ‘De onde você tirou tanta certeza?’.” E veio a proposta da Universal. “É um passo muito grande. Mas toda essa postura e firmeza que minha mãe me ensinou foram usadas totalmente contra ela”, brinca. “Se tem uma coisa que aprendi nas aulas de filosofia da escola é que crer é quase um processo de materialização. É um trabalho braçal. Se eu estou aqui construindo um castelo, só pode sair um castelo. Óbvio que existem várias limitações, é difícil para caramba. Mas eu estou ali, colocando essa energia muito forte. Então, minha mãe respeitou porque ela sabe que eu sempre fui muito responsável, nunca fui de mentir, falar que estava em um lugar e ir para outro. Eu nunca fui de matar aula, era nova, meus amigos bebiam e eu ficava: ‘O gosto é ruim, gente’. Quando veio a gravadora, ela ficou grata.”
Assinado o contrato, surgiu outra dúvida: Isadora seria o seu nome artístico? Chamada de Isa no dia a dia, logo previu que seria confundida. “Tem a IZA, maravilhosa, poderosa, que a gente conhece. A gente sabe como é, preto para as pessoas é tudo igual. Começa aí. Me chamavam de Karol Conká na época em que ela era careca! As pessoas têm pouca referência de gente preta ou têm muita, mas ignoram. Eu gosto do meu nome, mas lembro que conversei com a Lellezinha (a cantora Lellê, revelada pelo Dream Team do Passinho). Ela me disse assim: ‘É interessante você ter um nome artístico, porque você pode descolar uma coisa da outra (a vida artística da vida pessoal)’. Eu agradeço muito a ela por essa conversa, que foi extremamente importante. Procurei por nomes africanos e achei Malía, um nome egípcio.”
Um ano depois de o nome nascer, veio o primeiro disco, Escuta. Enquanto se prepara para o segundo, faz, em suas palavras, a “manutenção da sensibilidade”. “Peço a Deus para que eu não me descole disso. Sempre que posso, estou na Cidade de Deus, estou com meus amigos. Esse projeto é um pouco disso. Eu sinto que tudo que aconteceu em 2020 foi muito positivo porque a Malía não ‘viaja’. Então, faço questão de fazer a manutenção desse simancol. Eu gosto de ir ao centro, andar na rua. Eu gosto de ver nos camelôs o que tem, o que a favela está usando”, diz.
Não se desconectar da própria espiritualidade também é parte do processo. “Eu não tenho uma religião específica, mas toda vez que eu sinto vontade de ir ao templo, para a igreja, algum centro, eu vou. Tenho isso muito latente em mim. Eu tenho esse lance da filosofia kemética (uma filosofia africana com origem no Egito antigo). Ela traz para a gente essa pluriversalidade, você como também fonte de energia. Fui forçada a algumas coisas, tipo fazer primeira comunhão. Eu achava um saco porque as pessoas me olhavam com cara feia. Eu fiquei: ‘Tá tudo errado, um bando de racista. Eu sou pobre, mas tô usando a roupa da moda e estão me olhando’. Mas minha mãe sempre fez questão de me mostrar que tinha alguns caminhos. Eu acho até que essa forçação de barra foi interessante porque, para você falar, tem que se conhecer de dentro, sabe? Quando a gente fala de espiritualidade, a gente está falando de algo que aconteceu antes. Está muito embutido em tudo que estou falando na minha música, e não tenho como deixar isso de lado.”
Se desde a infância episódios de racismo atravessam sua trajetória, hoje, ela reflete sobre a estrutura. “Em toda entrevista, eu sou perguntada sobre isso. É um fato tão preestabelecido quanto o racismo na minha vida. O racismo também é isso, também me atinge nesse momento. Às vezes, eu quero responder, às vezes não. Tudo bem a pessoa querer falar sobre isso, mas eu não sou obrigada a ser sempre didática. Não é o meu papel enquanto ser humano, enquanto corpo preto, descolonizar as pessoas, porque quando elas bem entendem elas leem e se embasam no que faz sentido para elas. Eu falo quando quero falar, mas não gosto do fato de muitas vezes essa ser a pauta, de quando isso se sobrepõe ao meu trabalho, sabe? Isso é tão racismo quanto as outras coisas que a gente fala”, diz.
“Posicionamento, naturalmente, eu vou ter, porque uma pessoa preta estar feliz é um posicionamento. Esse lance todo de empoderamento acho um pouco cansativo. Não gosto dessa palavra ‘empoderar’, que significa dar poder. Eu acho isso um pouco papo de colonizador. ‘Sua música empodera’. Minha música não empodera. Quem sou eu para dar poder às pessoas? Minha música conscientiza as pessoas de que o poder está com elas e existem ferramentas. Tem todo um diálogo por trás, e a gente precisa entender a raiz do problema. Ela vem muito antes de me ter como embaixadora de um produto. Quantas pessoas negras estão idealizando essa campanha? Quantas pessoas negras há nessa empresa? Quem está à frente, quantas mulheres negras existem? No produto final, é uma mulher negra falando sobre empoderamento, mas antes… Então, é um discurso muito superficial, que comigo não cola”, diz.
Há dois anos morando sozinha, Malía se prepara para a chegada dos 22 anos, em 19 de dezembro, celebrando, ao lado da namorada, a liberdade que já conquistou. “Eu gosto de morar sozinha, de escolher. Tem uma frase que minha namorada fala: ‘A gente é jovem, a gente tem 21 anos, a gente pode escolher o que a gente vai fazer hoje’”, conta, entre risos.