MC Carol
no front

Ela desafia padrões desde que se entende por gente. Em uma entrevista emocionante, a cantora e compositora fala sobre autoestima, carreira e como sobreviver em um mundo que insiste em excluir quem não se encaixa em seus moldes.

Fotos Vivi Bacco
Edição de moda Suyane Ynaya
Texto Ísis Vergílio

MC Carol está com muitas saudades do palco. Sem poder realizar shows há meses por causa da pandemia, a cantora e compositora de 27 anos conta que está atravessando uma fase meio “pra baixo”. Em conversas nas sessões de terapia, que começou a frequentar pela primeira vez durante a quarentena, tem discutido como é possível manter uma boa autoestima num mundo em que você não consegue se ver representado em lugar algum.

A luta contra esse sentimento de inadequação, que ela conhece desde pequena, não rendeu somente assunto nas consultas. A vivência de ser uma mulher gorda, preta e funkeira, que questiona padrões estéticos impostos pela sociedade, foi traduzida na música “Levanta mina”, uma das faixas do aguardado segundo disco de Carol. Batizado de Borogodó (olha o spoiler de respeito!), o novo álbum será lançado ainda no primeiro semestre de 2021. Já o single “Levanta mina”, produzido pelo DJ Thai (Heavy Baile, Luísa Sonza, Pocah), acaba de chegar a todas as plataformas de streaming de música e pode também ser conferido no YouTube da artista, no clipe dirigido por Mariana Jaspe. Reunindo influencers, anônimas e também a pequena Elis MC, o vídeo é uma ode à pluralidade da beleza das mulheres, cis ou trans, e de pessoas que se identificam com o gênero feminino, como as pessoas bigênero.

Ao falar sobre amor-próprio, diversidade e inclusão na letra, Carol não estava pensando apenas em inspirar outras mulheres. “Eu fiz ‘Levanta mina’ pra mim. É uma música pra me ajudar nos dias difíceis porque, por mais que eu me ame, não há autoestima que aguente você não encontrar uma base no seu tom de pele, uma roupa do seu tamanho numa loja, não se ver na TV e revistas, entre outras coisas no dia a dia, que te excluem direta ou indiretamente”, diz a cantora.

Vestido, Heloísa Faria. Brincos, Minco.

E, de dias difíceis, Carolina de Oliveira Lourenço entende bem. Cria do Morro do Preventório, em Niterói, ela teve uma infância protegida pelos avós, mas tomou contato cedo com o racismo na escola. Aos 14 anos, depois da morte do avô, figura central em sua formação, foi expulsa de casa. Morando sozinha em um barraco, a garota foi “salva pelo funk”, como relata. Aos 16 anos, já estava vivendo de música: conquistou os palcos, lançou hits, percorreu o Brasil. Em suas letras, Carol retrata as realidades periféricas e a luta das mulheres, quebra tabus em relação à sexualidade e até ressignifica a história do Brasil, como no hit “Não foi Cabral”. A música virou uma referência em universidades e escolas por todo o país, o que levou sua autora a palestrar na Brown University, nos Estados Unidos, e na FGV, no Rio de Janeiro.

Forjada nos becos, nas ruas, nas favelas e nos bailes, entre lágrimas e muito corre, Carol conseguiu sobreviver em um país que todos os dias aniquila talentos brilhantes, em decorrência do racismo, da gordofobia, da LGBTQIA+fobia, do machismo. Realizou shows no Reino Unido, na Alemanha e em Portugal, além de tocar em festivais como Lollapalooza e Rock in Rio.

Com seu funk, Carol consegue o mesmo feito exaltado por Lélia Gonzalez, no livro Por um feminismo afro-latino-americano, ao falar sobre os blocos Ilê-Aiyê, de Salvador, e Agbara Dudu, do Rio de Janeiro: “(...) da maneira mais didática e prazerosa, fazem com que nossa etnia tome consciência do seu papel de sujeito de sua própria história e de sua importância na construção não só deste país como na de muitos outros das Américas”.

A entrevista a seguir foi realizada por telefone em dois momentos: o primeiro, no início de novembro, e o segundo, em dezembro, dois dias após o ensaio fotográfico que você vê aqui. E Carol ainda respondeu a uma rodada de perguntas de colegas do meio musical por whatsapp. Em todas as ocasiões, ela falou sem reservas, com franqueza e sensibilidade a toda prova. Confira.

Casaco, Rober Dognani. Brinco, Héctor Albertazzi.

Qual a sensação de estrelar a primeira capa do ano da ELLE View? Você curtiu?

De verdade, comecei a chorar. Estava com minha empresária na hora do almoço, e aí eu me emocionei muito. Eu estava com a minha autoestima lá embaixo, sabe? Você abre uma revista e não se sente representada. Você não vê uma mulher preta e gorda numa capa de revista. Você liga a televisão e não vê uma mulher preta e gorda sendo a protagonista de uma novela. Você não vê uma apresentadora preta e gorda. Então, você fica se sentindo mal porque, mesmo você se amando, mesmo tendo uma autoestima alta, chega um momento em que você se questiona: como eu cultivo esse amor, se eu não me vejo em lugar nenhum?

Parece que o mundo sempre está mandando sinais para mim que eu sou anormal, que eu sou excluída. É muito difícil manter esse amor quando você não é chamada pra nada, quando você não vê representatividade em lugares em que se pauta a beleza. E aí eu fui chamada pra ser capa de uma revista de moda e beleza. Fiquei muito feliz e emocionada! Na verdade, fiquei igual a uma criança. Sabe quando você maquia a criança e ela fica se sentindo linda? Há muito tempo eu não sentia isso.

"Todos nós temos a nossa beleza, cada um com a sua. Acredito que toda beleza tem espaço, todas as cores são lindas"

Estamos vivendo um momento em que as pessoas atacam umas às outras deliberadamente na internet. Como você lida com isso?

Ataques de internet não me ferem, não me machucam. O que me machuca é entrar num shopping e não ter roupa pra mim, é entrar num avião e me sentir extremamente desconfortável numa poltrona e ter que pedir cinto extensor, não conseguir usar o banheiro do avião. Então, vai muito além de piadinha ou ataquezinho na internet. É quando eu não consigo me enxergar como uma pessoa comum porque toda hora eu recebo sinais da sociedade mostrando que eu sou anormal. É impossível usar o banheiro do avião. Uma pessoa idosa que necessita de ajuda de terceiros não consegue utilizar, pois é impossível entrarem duas pessoas. Uma pessoa gorda não consegue usar o banheiro. Uma pessoa que tem algum tipo de deficiência não consegue usar o banheiro do avião. E é uma coisa tão simples de resolver. Por que o banheiro do avião não é um pouco maior? Então, são coisas tão simples, e essas coisas simples fazem as pessoas não terem vontade de sair de casa.

Nesse sentido, como foi pra você pensar o single “Levanta mina”?

Em primeiro lugar, eu escrevi essa música pra mim. Pra quando eu estiver triste e pra baixo, botar essa música para ouvir. E também ouvir uma parada que eu mesma escrevi, sabe? Se você canta pra dar exemplos pras outras pessoas, acho que esse exemplo também tem que servir pra você mesma. Então, nessa música, eu estou falando pra mim, pra eu levantar. Eu acho que a música tem muito poder: tem música que faz a gente sorrir, que deixa a gente mais alegre, tem música que a gente chora, pois nos emociona de alguma forma. Escrevi essa música pensando sobre tudo isso que sempre passei desde muito nova. Sempre fui gorda e totalmente fora dos padrões, então acho que essa música foi pensando em toda uma vida.

Você é uma artista que se posiciona: se precisar dar um papo reto, você dá! Nesse momento, qual papo reto você gostaria de dar?

Eu diria que todos nós temos a nossa beleza, cada um com a sua. E acredito que toda beleza tem espaço. Eu acho todas as cores bonitas. Eu acho a cor do indígena linda. Eu acho a pele negra linda.

Se eu ligar a televisão agora, vou ver a mesma coisa. É sempre isto: uma mulher loira, magra e alta. Se for muito baixa não serve, precisa ser nova. Se tiver idade mais avançada, também não serve. Não está dentro do padrão. Você precisa ter a cara lisa. Você pode ter 80 anos, mas, pra você ter espaço, precisa ter a cara lisa.

Estamos vivendo um momento em que as pessoas, pra serem lidas como bonitas, precisam ter cirurgias. Nunca está perfeito. Você tem que aumentar ou diminuir o silicone. Tem que fazer mais uma “lipozinha” porque tem uma gordurinha fora do lugar. Esse padrão de beleza, pra mim, já virou um absurdo, já virou loucura.

Se eu falar que não tenho vontade de fazer cirurgia, vou estar mentindo pra você. Mas o que eu, Carol, tenho vontade de fazer é um procedimento relacionado à minha saúde, somente. Tenho vontade de fazer bariátrica, mas por uma questão de saúde. Diabete é uma doença perigosíssima. Fui conversar com o médico, fiz todos os exames. Ele disse que minha saúde está boa, mas que era questão de tempo pra eu desenvolver outras doenças e eu não quero chegar a esse ponto. Eu nunca vou deitar numa mesa de cirurgia por causa da pressão que as pessoas colocam pra alcançar um padrão ou porque alguém acha o meu nariz feio, não. Pra mim, é surreal ver meninas de 20, 25 anos fazendo botox, cara. Já vi menina de 25 anos, que não tem ruga nenhuma, falar que fez botox pra prevenir quando estiver velha. Olha isso? É muita loucura.

"O momento em que eu mais sofri preconceito foi na escola. Quando você é criança, você não entende por que é excluída. Quando te explicam que é por causa da sua cor, do seu corpo, você fica sem chão"

A edição da ELLE View deste mês tem como fio condutor o tema Beleza. 

Cara, tô toda arrepiada aqui, juro. Não tenho palavras. Ao colocarem uma mulher como eu numa revista, vocês estão mandando uma mensagem pro mundo muito importante. Uma mensagem de que está tudo bem! Está tudo bem você ser gorda. Está tudo bem você ter o nariz largo! Você entende a importância? Eu não estou falando somente de mim. Poderia ser qualquer mulher preta e gorda numa capa de revista de moda e beleza. Quanto mais se reforça o padrão magra, branca, alta, nariz fininho, aquilo ali, de sempre, o mundo está mandando mensagem pras outras pessoas iguais a mim que a gente não é normal. E aí temos que operar pra competir e tentar chegar naquele ponto ali.

Na foto maior: vestido, Diego Gama. Brincos, acervo da stylist.

Se reconhecer é muito importante, né?

É muito importante, cara. Tenho certeza de que meninas iguais a mim, quando me virem ali, vão sentir a mesma coisa. Estou até falando pra caramba, porque estou emocionada, tentando buscar palavras aqui pra fazer vocês entenderem a importância. Vou ficar falando aqui uma hora e não vou conseguir dizer o que estou sentindo!

Você é muito tranquila, Carol!

Todo mundo fala que eu sou calma. Olha, todo mundo fala que eu sou muito diferente do palco. Eu acredito que todo mundo tem duas personalidades. Na vida particular, eu sou muito calma, muito tranquila. Em relacionamentos, eu sou muito tranquila. Eu sou mais de ouvir, totalmente diferente do palco, xingando, evocando a Carol bandida.

"Achavam que eu não ia viver muito. Pessoas da minha família diziam que eu não passava dos 15. Eu acredito que o funk salvou a minha vida"

Você falou que é eclética, né? O que está ouvindo atualmente?

Eu gosto de flamenco, de música turca, de forró brega, de jazz, de Nina Simone, Amy Winehouse, eu gosto muito. No dia das fotos, perguntaram: “Carol, o que você quer ouvir?” Eu comecei a botar Zezo dos Teclados e as pessoas ficaram um pouco assustadas. Porque é isso, né? A pessoa desenha que quem canta funk só ouve funk. Eu gosto de vários tipos de música. No meu show, tem uma parte que eu canto em inglês uma música da Nina Simone, canto funk putaria, entro pras músicas políticas, sobre feminismos, sobre violência policial. Fui criada ouvindo Roberto Carlos, Elis Regina, Cartola, Nelson Cavaquinho, Dalva de Oliveira. Tem umas músicas que nunca vão sair da minha cabeça, da minha infância.

Como foi sua infância?

Em toda entrevista digo que o momento em que eu mais sofri preconceito foi quando criança, na escola. A escola é muito dura pra uma criança preta e pra uma criança gorda, sabe? Quando as pessoas perguntam: “Carol, qual foi o momento em que você mais sofreu?” Sempre digo que foi na escola. Quando você é uma criança, você não entende por que é excluída. Quando te explicam os motivos que fazem você ser excluída, maltratada, apelidada, mesmo sendo uma criança legal e carinhosa, quando você entende que é por causa da sua cor, do seu corpo, você fica sem chão, sem entender. Você é apenas uma criança. Então, quando a Maju Coutinho começou a passar na televisão, lembro que apareceram muitos relatos de crianças se identificando com o cabelo dela. É muito difícil você ver uma apresentadora negra num jornal tão importante. Aliás, em qualquer coisa na TV.

"Tem um rio muito grande que separa artistas brancos de artistas pretos. Não temos as mesmas oportunidades"

Qual a sua relação com a beleza?

Dentro de casa, foi ensinado pra mim que eu era bonita. Meu avô sempre conversou muito comigo e dizia que eu tinha que ter orgulho da minha cor, orgulho de mim, que eu era bonita. Ele sempre reforçou isso em mim. Importante dizer que não acontece em todas as casas, pra deixar bem claro. O que a gente mais vê são os próprios pais colocando as crianças pra baixo. A própria família criticando, falando coisas ruins para a criança a respeito do corpo. Quando você é uma criança gordinha, muitas pessoas ficam te depreciando, sabe? A tendência é você engordar mais, e a tristeza é que passam pra você que a culpa é sua. E a culpa não é sua. Os adultos falam de uma forma colocando a responsabilidade em você, como se você fosse culpada.Aconteceu uma situação comigo quando criança. Cheguei até a publicar uma foto nas minhas redes sociais. Eu tô vestidinha de noiva. Na época, na escola, fizeram uma atividade em que tinha que se responder algumas questões de matemática. Quem acertasse mais iria ser a noivinha da quadrilha e o menino que acertasse mais seria o noivinho. Das meninas, eu fui a que mais pontuou. A maioria dos alunos da minha sala era branca. Minha avó, com muito esforço, mandou fazer um vestido lindo de noiva pra mim. Chegando no dia da apresentação, o menino, que havia sido o escolhido pra ser o noivinho, não apareceu, pois ele tinha que dançar comigo. Ele não apareceu e nenhum outro queria dançar comigo. Então, é assim, desde pequena. Fora de casa, me foi passado que eu era uma criança feia, entende?

Eu nunca me senti valorizada, uma mulher valorizada. Sempre procurei me esconder ao máximo. Esconder meu corpo com roupas mais largas, roupas masculinas. Quando eu comecei a cantar funk e botar muita coisa pra fora em cima do palco, comecei a me sentir mais bonita.

O que o funk significa pra você?

O funk é meu trabalho e sempre vem em primeiro lugar. Eu não tenho nem como te explicar o que o funk é na minha vida. Fui adotada pelos meus avós e tive uma outra educação. Imagina, criada por dois idosos, né? O sonho dos meus avós e bisavós era que eu fosse policial, e eu queria ser policial. Gostava muito daquela coisa da farda. Com 14 anos, minha vida, do dia pra noite, mudou. Meu avô faleceu, os filhos dele me colocaram pra fora, fui morar sozinha. Tive que largar a escola e viver de bico. Eu saí de um momento em que tinha tudo, que eu era quase mimada pelos meus avós, para morar num barraco e sobreviver. Eu fiz currículo de menor aprendiz, as pessoas olhavam pra minha cara, olhavam pra minha roupa e falavam que não. Tentei de tudo. Tinha dias que eu carregava material, lavava carro. No dia que estava chovendo, não tinha trabalho, mas você come na chuva, entende? Eu estava nessa situação. Todo mundo falava que eu não ia durar muito. Pessoas da minha família falavam que eu não ia passar dos 15. Eu não tinha objetivo nenhum. O funk entrou na minha vida do nada, cara. O sucesso veio muito rápido. Com 15 anos a parada viralizou, com 16, eu estava pegando estrada.

Foi bem ruim no começo. Era uma equipe de homens e eu tinha 16 anos, mais ou menos, os caras tinham mais de 30, com filhos, família. Então, eu não tinha voz, né? E alguma coisa dentro de mim falava: “Carol, calma que tudo vai ficar bem, tudo vai ficar mais tranquilo”. Eu persisti com aquela parada porque é uma coisa que eu amo. Eu acredito que o funk salvou minha vida.

"Sou muito julgada por cantar putaria, mas eu canto sobre coisas que os homens falam normalmente entre eles na rua"

O que te faz sentir bem? O que muda seu astral no dia a dia?

Trabalhar, estar em cima do palco, receber a energia do público, o carinho das pessoas. O momento em que eu me sinto mais bonita e fico mais feliz é quando estou trabalhando, porque fico com pessoas que me tratam com carinho. Por exemplo, você está vivendo com um cara que te bota pra baixo o tempo todo e te trata igual um lixo. Mas aí você vai trabalhar e todo mundo te trata igual uma rainha e diz que você é linda, que seu trabalho é maravilhoso, recebe todo esse amor. Quando você volta pra sua vida real – é aí que muitos artistas entram em depressão, porque o choque de realidade é muito grande –, tem fases em que você começa a se perguntar: “Será que essas pessoas gostam de mim mesmo? Será que as pessoas admiram de verdade o meu trabalho ou falam isso por falar?” Eu me perguntei isso num momento em que eu estava sendo tratada muito mal, você começa a acreditar naquela pessoa ali. Quando o homem começa a ver que você não está no mesmo nível que ele e entende que não vai conseguir estar à sua altura, ele tenta te diminuir. E chega a um ponto em que você começa realmente acreditar naquilo, que você é um lixo, que seu trabalho é um lixo e que nada que você faça está bom. Todas as mulheres, em qualquer trabalho, passam por esse tipo de situação. Porque é isto: quando a gente ganha mais do que o homem, ele sempre tenta tirar isso da gente, botar a gente pra baixo.

Quais são os seus principais desafios na vida pessoal e na carreira?

Eu acho que a gente não é valorizada. Tem um rio muito grande que separa artistas brancos de artistas pretos. Nós não temos as mesmas oportunidades. A gente não é valorizada igual. Qual o nome dessas meninas que trabalham no Instagram?

Influenciadoras?

Isso, influenciadoras. As influenciadoras brancas recebem X e as influenciadoras negras recebem Y. Não precisa nem ser muito inteligente pra saber que existe um grande rio que nos separa, entende? Eu acho que a maior dificuldade é a falta de reconhecimento. A gente não é visto como igual, e isso aí respinga na nossa vida pessoal também. Quando eu falo da vida pessoal, estou falando sobre relacionamento. Você não é obrigado a amar a pessoa X, mas é curioso que, sempre que um homem preto ascende economicamente, sai da favela, ganha dinheiro, ele sempre vai buscar uma “lora”. Eu acho curioso, sabe? É muito difícil você ver um preto que ganhou dinheiro com uma mulher preta. Então, a gente não tem valor em aspecto nenhum. Se eu for uma mulher preta da favela, então, eu só sirvo pro homem preto pobre da favela. Até esse homem preto ficar rico, eu já não sirvo mais. Então, esse é o valor que a gente não tem, tanto profissionalmente quanto amorosamente. Essa é a maior dificuldade, um desafio.

"Eu tinha uma relação de insegurança com a moda, queria parecer igual a todo mundo, mas fui me permitindo experimentar coisas novas e entender que nem tudo é pra gente o tempo inteiro"

O que você espera do futuro?

Eu espero que no futuro as pessoas melhorem, que respeitem as diferenças. Eu, aqui, também estou falando pra mim. Há dez anos, eu não era a Carol que eu sou hoje. Sem querer, eu também falava frases homofóbicas, frases machistas. A gente acaba reproduzindo essas coisas, pois estamos dentro de uma estrutura. Quando a gente começa a conhecer outras pessoas, conversar, ter acesso a outros mundos, a gente começa a mudar. Acho que também tem o esforço da pesquisa, querer pesquisar sobre os assuntos. Mas não adianta você estudar e não ter empatia, continuar preconceituoso, machista, homofobico, racista.

Põe na roda!

Quer saber mais sobre MC Carol? Confira as respostas da cantora às perguntas feitas por Karol Conká, Jup do Bairro, Emicida e outros artistas.

O que você acha que manteve da sua essência de infância? E o que você acha que perdeu com o passar dos anos?

Letrux, cantora, compositora e instrumentista

Foram muitos ensinamentos, mas uma coisa que sempre foi passada pra mim pelo meu avô é que eu não devo me importar com as pessoas da porta pra fora. Eu tive contato com o racismo desde nova. Aprendi, então, a não me importar com o amor e com o ódio das pessoas da porta pra fora. Eu trouxe isso quando eu entrei no funk. Sendo uma mulher totalmente fora dos padrões, tive que trazer isso de não me importar, fazer o meu trabalho e seguir.Eu acho que perdi minha adolescência, comecei a trabalhar muito cedo, com 14 anos. Tive que largar o esporte, a escola, que eu gostava muito. Eu acho que pulei de criança para a fase adulta. Não tive adolescência. Perdi e ganhei, né? Ganhei minha profissão, ganhei independência, dinheiro, então, não me arrependo. Lógico que a gente queria ser adolescente, curtir a adolescência com alguém, com nossos pais nos sustentando.

Qual foi a primeira MC que você viu, que virou uma inspiração para você?

Emicida, cantor e compositor

A Tati Quebra-Barraco. Eu amo essa mulher. Quem falava muito dela pra mim era o Mr. Catra. Logo que eu comecei, Catra me chamava pra fazer algumas participações e sempre falava da Tati pra mim. Eu já tinha ouvido falar dela, comecei a pesquisar muito, já era muito fã apaixonada. A gente conseguiu se encontrar num trabalho juntas, num reality show chamado Lucky ladies, em 2014, e foi lindo. Me inspiro muito nela, nas músicas, na postura, no palco. A postura dela no palco foi uma das primeiras coisas que me chamaram a atenção.

Você já precisou ser mais durona do que realmente é para impor mais respeito em algum lugar?

Urias, cantora

Sim, sempre precisei ser durona. Sempre precisei ter uma postura de homem, me vestir como homem, falar como homem, andar como homem, pra poder ter respeito e ser respeitada, até hoje. Em casa, eu sou uma Carol. Com minha família, sou outra Carol e, na rua, eu sou Carol Bandida. Na rua, não posso abaixar a cabeça, tenho que manter uma postura pra poder ter respeito e ter moral, sabe? Então, é isto: sempre tive que ser mais durona do que realmente sou.

O que te mantém inspirada? E como você conecta a sua verdade por meio da música? 

Karol Conká, cantora, compositora e produtora

As minhas músicas são sempre baseadas no cotidiano e em coisas que acontecem. Eu gosto muito de fazer um funk cômico, sabe? E para isso eu penso em coisas do cotidiano, coisas engraçadas. Minha comunidade, meus amigos que estão ali no mototáxi, onde fica uma galera zuando, brincando. Acho que é isso que me mantém inspirada. Quando estou muito dentro de casa, é muito mais difícil compor. Quando vou pra rua, sempre tem uma história nova, alguma gíria nova, e isso me mantém inspirada. Eu sempre tento falar sobre uma história real, sobre o que estou sentindo, sobre o que eu sou. Gosto muito de falar sobre a liberdade do meu corpo e sou muito julgada por cantar putaria. Eu canto coisas sobre sexo que os homens falam normalmente entre eles na rua. Eu boto na minha música.

Carol, eu sou louco pelas mensagens que você joga na internet. Uma mulher brasileira, que trabalha o tempo inteiro com a verdade. Diante disso, eu te pergunto: o que você gostaria de dizer na cara do presidente Bolsonaro?  

DJ Zé Pedro, DJ e produtor musical

Eu diria na cara do Bolsonaro que violência gera mais violência, que a maneira de diminuir a violência não é investindo em armas. Diria pra deixar de investir em armas e investir em educação. Educação, cultura, esporte e saúde.

Somos constantemente atacadas por nossas opiniões e imagens. Como, por exemplo, quando simplesmente publicamos uma foto. Esses ataques atingem a sua autoestima de alguma forma? Como você protege a sua saúde mental?

Jup do Bairro, cantora e compositora

Ataques de internet não atingem a minha autoestima, não me deixam pra baixo. O ataque de internet não me afeta. O que me afeta é entrar num shopping e não conseguir uma roupa. Mas a roupa acho que é o de menos. O que me afeta são essas coisas do dia a dia, sabe? Essas coisas constrangedoras, que deixam a gente com a autoestima baixa. Você ter que se expor, ficar pedindo coisas que você não deveria pedir, tipo o motorista do ônibus ter que abrir a porta de trás. Cara, a roleta tinha que ser pra todo mundo.

O que te incentivou a entrar na política (em 2018, MC Carol foi candidata a deputada estadual no Rio de Janeiro pelo PCdoB, mas não se elegeu)? Acha que foi uma boa escolha tanto como pessoa quanto como artista? Tentaria novamente?  

Deize Tigrona, cantora, e Djonga, cantor e compositor

Essa coisa que o jovem tem de querer melhorar, querer lutar por um mundo melhor... Mas posso dizer que foi a pior experiência que eu tive. Fui muito perseguida, muito atacada. Eu não ligo pra ataques, mas, quando o ataque é muito grande, ele influencia no seu trabalho. Eu não tinha a intenção de parar com o funk para poder trabalhar com política, sabe? Eu tinha a intenção de estar nos dois, me dividir entre os dois, e afetou muito meu trabalho. Não tentaria novamente e posso dizer, com toda a certeza, que me arrependo muito. Se eu pudesse voltar atrás, eu não teria me envolvido nesse mundo da política. É um mundo pesadíssimo, tem que estar muito preparada pra enfrentar esse universo de pessoas racistas, machistas.

Você tem vontade de fazer um disco? Se, sim, esse processo já foi iniciado? Se ainda não iniciou, estamos aí disponíveis, principalmente para produzir ou ajudar no que for necessário! Sou fã. 

Rincon Sapiência, MC e produtor musical

Então, eu lancei um álbum em 2016, foi o Bandida. Em 2021, a gente vai lançar outro álbum e tamo aí, também sou fã. Bora!

Mulher, negra, funkeira e que, assim como eu, foge dos padrões impostos pela sociedade. Características que já fazem muitas pessoas olharem torto para a gente e até mesmo duvidarem do nosso potencial. Você acredita que a música é o nosso maior instrumento para sermos vistas, para mostrar que viemos para ficar e militar por uma sociedade mais justa e que respeita a diversidade? Deixa para gente uma mensagem de como não desistir dos nossos sonhos, por favor?

Pepita, cantora e compositora

Sim, eu acho que a arte é um caminho muito forte, ainda mais pras pessoas periféricas. Com a arte, temos a oportunidade de sermos ouvidas, vistas. As pessoas têm a visão de que, pra ser alguém, você precisa estudar e fim. Mas nós não temos os mesmos privilégios e oportunidades, né? Muitos de nós têm que largar a escola muito cedo pra começar a trabalhar. Eu sempre falo que a arte salvou a minha vida. Se não fosse pela arte, eu não sei o que seria.Eu acho que quando a gente desiste dos nossos sonhos, não era o nosso sonho, entende? Porque não tem como você desistir do que você é. Você não pode desistir do que você é porque tem gente te atacando, dizendo que você não é capaz, sabe? Acho que quando a gente tem um sonho, tem que colocar todo mundo de lado e seguir sem olhar pra trás. Quando as pessoas falam: “Carol, qual conselho você daria a quem está iniciando na carreira artística, iniciando no funk?” Meu conselho é: não aceite conselhos. Quando a gente está iniciando qualquer coisa, as pessoas dizem: “Mas isso não é difícil? Isso não é demais?” Quando eu comecei, ninguém me apoiava, e eu fui sem olhar pra trás, fui sem olhar pro lado. A gente não tem que aceitar conselho de ninguém, entendeu? Sempre seguir nossa cabeça e coração. Coração tá mandando ir? Vai. Se der errado, deu, você tentou, você foi pela sua cabeça. Então, eu acho que o conselho é esse.

Se você encontrasse uma lâmpada mágica, quais seriam os seus três desejos? 

MC Soffia, cantora e compositora

Eu pediria a paz no mundo. Pra mim, a paz é uma mistura de respeito, com amor ao próximo, né? Não adianta fazer pedido só pra mim, vivendo num mundo violento, num mundo onde as pessoas não se respeitam. Então, se eu estivesse num mundo melhor, já estaria muito feliz. Pediria paz e que houvesse respeito entre as pessoas, amor, que se olhassem como iguais, respeitando as diferenças. Pediria dinheiro, porque a gente precisa. Dinheiro e amor, eu acho que é o que todo mundo quer, né?

Se você fosse secretária da cultura, o que faria em relação ao funk no Brasil? 

MC Rebecca, cantora

Investiria mais em cultura, tentaria vincular a educação com a cultura. Aplicaria colégios integrais, pois no colégio a criança vai de manhã, volta à tarde e a mãe só volta à noite. A criança fica o dia todo na rua e, consequentemente, com o passar do tempo, acaba caindo nas drogas, no crime. Eu investiria na educação vinculada à cultura e aos esportes. A criança teria aula de artes, aula de dança. Nem todo mundo tem o privilégio de conseguir terminar a escola e fazer uma faculdade. Tem muita gente que recorre ao caminho da cultura. Eu penso que se tivesse, em todas as comunidades, uma escolinha de teatro pra crianças, muitas delas não iriam pras drogas, pro tráfico. Porque tem muita criança talentosa, tem muito adolescente talentoso, que dança, que canta, que toca instrumento, mas não tem onde aprimorar e lapidar isso, acaba ficando pela rua jogando talento no lixo, indo preso e sendo morto.

Você é um ícone do funk e da música urbana e periférica no mundo. Como você enxerga o Brasil daqui a dez anos, musicalmente falando? Quais são as suas expectativas?

Tássia Reis, cantora e compositora

A chegada desse presidente aí, que não se importa nem um pouco com a cultura, com a educação, me preocupa bastante. Mas eu sou otimista. Acredito que, se Deus quiser, essa pessoa vai sair do poder e outras pessoas legais estarão lá. Vou falar sobre o funk, que é a minha área. O funk já está acessando lugares que não acessava há dez anos. Quando eu comecei, não tinha funk em casamento, festas de 15 anos, não víamos funk na televisão. E hoje o funk está em todos os lugares! Está em casamento, no filme, nas novelas, está no Rock in Rio, no Lollapalooza. Eu acredito que daqui a dez anos a gente vai chegar ainda mais longe. O preconceito é muito grande, né? Mas tenho fé que as pessoas vão estar com a mente mais aberta, com menos preconceito, e a gente estará num país melhor!

Na foto maior: vestido, Jessica Jin. Brincos, Eduardo Caires.

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Assistente produção executiva: Isabela de Paula