Carnaval sem pasteurização
Nos subúrbios cariocas, grupos de bate-bola mantêm viva a tradição que começou nos anos 1930 e se renovou com o funk, o rap e a cultura pop.
Por Caio Rosa
Fotos Ratão Diniz
Longe dos bairros nobres, dos holofotes e das grandes logomarcas que financiam o Carnaval “oficial” do Rio de Janeiro, máscaras, coletes, boás, sombrinhas, bolas e outros adereços são fabricados em pequenos barracões por todo o subúrbio carioca. Essa produção caprichada tem um destino certo: as turmas de bate-bola, também chamadas de Clóvis, que há aproximadamente 80 anos sobrevivem a todas as tentativas de gentrificação e pasteurização dessa festa popular brasileira. Esqueça a pirotecnia do Sambódromo e os blocos da Zona Sul. Bate-bola é outra história. Com beleza e luxuosidade, liberdade estética e performática, os bate-boleiros caminham pelas vielas como legítimos representantes da cultura popular e periférica de todo o Brasil.
Declarado Patrimônio Cultural pela Prefeitura do Rio em 2012, o bate-bola ganhou esse nome por causa de um dos objetos mais importantes em sua construção: a bola amarrada com cordas a um bastão. Com esse acessório, os bate-boleiros saem pelas ruas durante a semana de Carnaval criando um som estarrecedor, que assusta curiosos de todas as idades e aumenta o impacto das apresentações, repletas de belas fantasias. Já a explicação mais difundida sobre a origem do outro nome dado às turmas de mascarados, Clóvis, é de que ele seja possivelmente uma alusão aos “clowns” (palhaços) da Europa e da América.
Nascido no caldeirão da década de 1930, o bate-bola carrega influências da Folia de Reis, festa católica em homenagem aos reis magos, com grande presença de elementos culturais africanos. Também contribuíram para o surgimento dessa tradição os bailes de máscaras da burguesia europeia, que, importados para o Brasil, acabaram se adaptando e sendo incorporados pela cultura popular urbana. Podemos ainda relacionar os bate-bolas à cultura de máscaras existente há milênios em toda a África, Ásia e Américas e que coexistem de norte a sul do país, no teatro, nas religiões ou como um mero entretenimento.
Mas a mistura não para por aí: a cada Carnaval, novos ingredientes vão sendo agregados a essa festa. Hoje, o bate-bola é, em essência, jovem e da periferia, tendo o samba, o funk e o rap como trilha sonora. A moda, os desenhos animados e o cinema servem também como um terreno fértil para a construção dos temas de cada turma. Há um link evidente entre a cultura dos bate-bola e elementos da cultura pop mundial, principalmente vinda dos Estados Unidos – que, por sinal, é em grande parte criada e desenvolvida por pessoas periféricas bem parecidas com as que movem o bate-bola no Rio de Janeiro. É um caldeirão que está sempre fervendo e criando, sem se preocupar com classificações ou fronteiras – cultura pela cultura, tudo vale!
Isso não quer dizer, no entanto, que as escolhas não sejam altamente criteriosas e elaboradas. O detalhismo e a dedicação dos participantes nos preparativos são facilmente observados na escolha da marca e da cor do sneaker que vai combinar com toda a roupa. Na máscara e nas ilustrações que vão ser minuciosamente desenhadas e impressas nas casacas, nos coletes e em todas as peças das fantasias.
O ritual do Carnaval para os bate-boleiros é um processo árduo e demorado, que movimenta milhões de reais e depende de uma linha de produção quase toda manual. Tudo começa pela escolha do tema pela turma, passando pela pesquisa dos melhores fornecedores, pelos eventos de arrecadação de fundos, pelo corre diário para conseguir pagar as fantasias, que chegam a custar 2 mil reais, e, finalmente, pela saída.
O grande dia chega e todos se preparam: festas são organizadas por cada turma, geralmente na rua do seu barracão, seguindo por toda a cidade. Centenas de amantes da cultura, familiares e turmas rivais vão conferir a apresentação das fantasias, gerando discussões e disputas entre as mais bonitas e luxuosas.
É difícil precisar exatamente quantas turmas de bate-bola existem atualmente no Rio de Janeiro, mas Ednaldo do Nascimento, bate-boleiro desde 1970, arrisca uma estimativa: “Existem em torno de 1,5 mil turmas espalhadas pelo estado do Rio, a maioria se concentrando nos bairros das Zonas Oeste e Norte, mas bem forte também na Baixada Fluminense e em Jacarepaguá. A cada ano, uma turma acaba e nascem outras duas”. Cria de Marechal Hermes, Ednaldo é a mente criativa por trás da Equipe Bruno Magia, o principal canal da rede sobre a cultura bate-bola.
O tamanho dos grupos varia muito – eles podem ter 20 ou até 200 integrantes –, mas costuma existir sempre uma hierarquia demarcada. Há os “cabeças”, que direcionam o tema ou o enredo e os eventos durante o ano e cuidam também da administração geral e do dinheiro que circula, destinado à confecção das fantasias e à organização da saída. Existem também os “correrias”, que são responsáveis por levar e buscar os materiais, além do time de costureiras, que ajuda em todo o processo.
Historicamente, os bate-bolas formavam uma cultura reservada apenas para homens, mas é cada vez maior a presença de mulheres, que reivindicam seu espaço ou criam seus próprios grupos. Isabela Carvalho, 19 anos, não só participa como é administradora de uma turma de bate-bola, a Animação Original de Jacarepaguá: “Em muitas turmas, os homens veem as mulheres só como um pedaço de carne, mas aqui, na Animação, a gente tem nossos cargos, produz junto as fantasias e isso tudo é uma honra muito grande”. Ela discorda de quem classifica as fantasias usadas pelos bate-boleiros como masculinas: “Para mim, não tem sexo. Abaixou a máscara, eu viro outra pessoa”.
Apesar de sua importância na cultura do Rio de Janeiro e de tantas décadas de tradição, o bate-bola ainda é pouco difundido em outros estados. Quando é conhecido, muitas vezes aparece relacionado a um contexto de violência. Seria um erro dizer que nunca houve agressões e conflitos entre turmas de bate-bola, mas seria igualmente equivocado ignorar que esses episódios de violência são um sintoma e não a causa de problemas já existentes em nosso Brasil.
Reforçar essa narrativa depreciativa é perpetuar a ignorância em relação a uma cultura extremamente rica. Como alerta a autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, é preciso estar atento ao perigo de uma história única, que acaba minando e isolando milhares de pessoas por causa de sua cor, religião ou expressão cultural.
Subestimado, o tradicional Carnaval do subúrbio carioca tem de lidar com a ausência de apoio do estado, que direciona todos os recursos para o dito Carnaval oficial, no Centro e na Zona Sul da cidade. “Antigamente, até tinha algum apoio do poder público, mas ultimamente quem organiza o Carnaval em Marechal e outros bairros vizinhos são os bate-boleiros e alguns comerciantes”, relata Ednaldo, uma das principais vozes contra a violência na cultura bate-bola. “O poder público nos deixa à deriva e, a partir disso, fica fácil para alguém que não tem compromisso nenhum com a cultura fazer e acontecer. Depois a culpa cai para todos os bate-bolas”, completa.
A vontade de mudança e o combate ao estereótipo de violência estão muito presentes na alma dos bate-boleiros, em sua grande maioria vindos de áreas com profundos problemas relacionados à ausência de infraestrutura e de investimento em cultura, além da violência policial. Nesse contexto, eles tentam criar formas de lazer e alimentar uma relação afetiva com o seu espaço. O bate-bola vem para agregar e compartilhar, e não para separar. Ultrapassa fronteiras socioculturais, cria laços de pertencimento comunitário, dialoga com a moda e com o entretenimento mundial e recria símbolos da modernidade juntamente com o funk, o samba e outras manifestações nascidas nas favelas e nos subúrbios do Brasil.
E, no Carnaval da pandemia, como ficam os bate-bolas? Entre os integrantes, a pergunta mais frequente nesses últimos meses foi: “Sair ou não sair?” As opiniões são diversas. Há turmas que pretendem colocar as fantasias em eventos exclusivos. Outras planejam organizar as saídas dentro dos próprios bairros, e outras ainda preferem esperar a efetivação do processo de vacinação e se focar no planejamento para o Carnaval de 2022, que já gera uma grande expectativa.
Ainda que este ano os mascarados não saiam às ruas, a cultura do bate-bola segue evoluindo e passando adiante uma tradição que já está enraizada em boa parte da população carioca. E continua na luta contra os estigmas e em busca de apoio e estrutura para manter viva uma das mais genuínas manifestações da identidade brasileira.
A reportagem agradece aos que movimentam a cultura bate-bola: Pinguim, Turma União de Bento Ribeiro, Turma Animação Original, Ednaldo e Equipe Bruno Magia e Turma Relíkia.
Grupos de bate-bola retratados nesta reportagem, a partir do alto:
fotos 1, 5, 7, 8 e 10, Turma da Mistura; fotos 2, 4 e 6, Turma Estrelas; foto 3, Turma da Praça; foto 9, Turma Pura Tentação; foto 11, Turma Bolo Doido; foto 12, Turma Bem Feito.