RAIO-X
DE UM DESFILE

RAF SIMONS - INVERNO 2021

Por Luigi Torre
Fotos Cortesia | Raf Simons

RAIO-X
DE UM DESFILE

RAF SIMONS - INVERNO 2021

Por Luigi Torre
Fotos Cortesia | Raf Simons
Tempos difíceis, né, amigas? Sabemos, e Raf Simons também. Como muitos de nós, o estilista belga entrou numa viagem introspectiva durante a criação da coleção de inverno 2021. O resultado foi, provavelmente, uma de suas apresentações mais poéticas, sensíveis e pessoais. É que, em meio a tanta incerteza e insegurança, Raf se pegou pensando sobre as coisas que ama. É tudo sobre isto: “Coisas que sempre amei, que estão presentes em todas coleções, nos processos por trás delas e nas roupas”, nas palavras do próprio.
Começando pela locação: uma usina de força, em uma antiga mina de carvão transformada em centro cultural, em Genk, Bélgica – mesma cidade em que Raf estudou design industrial antes de migrar para a moda. A coincidência não é à toa, tampouco o que significa, nas entrelinhas, um lugar que gerava eletricidade se transformar em um ambiente que promove outro tipo de energia: para a alma, para o ser e para o intelecto. Já se falou muito – ainda que nunca o suficiente – sobre como a cultura se tornou uma importante fonte de vida, resiliência, esperança e mais um tudo em tempos caóticos como os que vivemos. Pois bem.
Deixando a semiótica para lá, a trilha sonora também merece menção honrosa: Kraftwerk do começo ao fim, com destaque especial para “Radioactiviy”. A letra da música, lançada em 1975, fala que “a radioatividade está no ar, para você e para mim”. Qualquer semelhança com os riscos de respirar o mesmo ar ao lado de alguém não é mera coincidência.
Esta não foi a primeira vez que Raf referenciou o grupo alemão. Sua coleção de inverno 1998 (acima) foi uma grande homenagem ao Kraftwerk, com direito a modelos reproduzindo a imagem da capa do álbum The man machine, de 1978. Vale dizer ainda que a cena da música eletrônica, principalmente a do techno, é extremamente influente no trabalho do estilista.
E isso nos leva à coleção masculina de inverno 2018 (acima). Um desfile bastante controverso, para dizer o mínimo. Em tese, era sobre Christiane F., mas o livro e o filme, na real, são só um trampolim para Raf falar sobre as angústias e ansiedades da juventude. Falava também sobre temas espinhosos, como drogas e sua relação com diversos movimentos da cultura jovem, e até sobre a morte.
Muita gente percebeu a conexão entre o inverno 2021, apresentado recentemente, e a coleção desfilada em fevereiro de 2018. É que, de novo, ambas falam sobre experiências e vivências muito pessoais e caras ao estilista – com um pinguinho de melancolia e de novo com a ideia de “memento mori” (a lembrança certa de que um dia todos morreremos. Desta vez, porém, a obsessão pela cultura, estética e até angústias jovens são menos latentes – ou pelo menos aparentes.
Curiosamente, o vídeo do desfile começa com a palavra “ataraxia”. Segundo o dicionário, ataraxia corresponde a qualquer sensação, fugaz ou permanente, de serenidade, tranquilidade e calma. Numa leitura mais filosófica, é a completa ausência de perturbações ou inquietações da mente, concretizando o ideal helênico de uma felicidade tranquila, obtida através do domínio ou da extinção de paixões, desejos e inclinações sensórias. Basicamente, tudo o que uma mente perturbada deseja em tempos pandêmicos.
Raf ama uma manguinha puxada, ainda mais com sobreposições. O recurso de styling, aliás, marcou suas primeiras coleções para a Prada.
A coleção é um estudo sobre como ideias, vontades, elementos, proporções e silhuetas desencontradas podem se encontrar, combinar, entrar em sinergia. Outras palavras estampadas na tela ao longo da apresentação são: equanimidade, dicotomia, sincronicidade, lealdade, devoção. Isso ajuda a entender alguns pontos importantes da coleção.
Podemos começar pela combinação de cores improváveis que convivem em completa harmonia. Raf é conhecido como um exímio colorista e, mais uma vez, deixa isso bem claro. Porém o contraste aqui diz bastante sobre os dilemas de hoje em dia. Principalmente quando considerados em relação ao shape de muitas das roupas.
Sobre isso, vale mencionar as sobreposições de peças em proporções e silhuetas discrepantes. Tipo um casaco de alfaiataria com uma calça flare meio folgada, meio arrumada. Ou os tricôs oversized com mangas assimétricas sobre blusas ajustadas ou camisas superamplas. E, claro, todos os maxicasacos de matelassê com ombros ligeiramente caídos, quase como a versão de ficar em casa de um sobretudo.
A cabeça coberta é outra referência recorrente no trabalho de Raf e foi um dos pontos mais comentados do desfile de inverno 2018 da Calvin Klein, também assinado por ele.
É interessante pensar como Raf, na contramão de muita marca e estilista já de olho na vida pós-vacina, ainda não se sente 100% preparado para se desapegar do modus operandi seguro e isolado no qual muitos ainda nos encontramos. Em vez de colocar a pele à mostra, delinear o corpo ou apostar pesado na roupa da buatchy, o estilista prefere a segurança não-me-toque de um casaco-cobertor ou o conforto de um tricô oversized. 
É verdade que cores e formas, às vezes, parecem querer extravasar. Porém, como na vida real, são os detalhes que nos prendem. No caso, eles aparecem como braceletes de esqueleto, pequenas mãozinhas segurando o braço, delimitando os shapes, alterando a silhueta. Não chega a ser uma prisão, nem algo limitante. Apenas a lembrança de uma realidade e da única certeza que temos em vida: que um dia ela acaba. Se de um lado o memento mori fala sobre a certeza da morte, do outro, ele lembra a importância de celebrar e viver o que nos faz feliz, o que amamos.