Os sapatos nunca estiveram tão feios, e que bom

Contra todas as normas do bom gosto, o feio está na moda e o sapato é, definitivamente, a sua porta de entrada.

por Lelê Santhana

Há mais de uma década, Alexander McQueen apresentou um sapato capaz de revirar concepções até mesmo de quem nunca sonharia em experimentá-lo. Com um salto pontiagudo de exatos 23 cm, o modelo da coleção de verão 2010 era coberto por escamas brilhantes, continha uma plataforma interna extrema e forçava o usuário a manter os pés curvados na ponta dos dedos. Mesmo sendo apenas de exibição para o desfile, a peça marcou o que veríamos pelos próximos tempos, mas, aos olhos de muitos (Lady Gaga, definitivamente, não estava incluída aqui), parecia extremamente feia.

Alguns anos depois, no verão 2013 da Celine, foi a vez de Phoebe Philo entrar nessa história, com versões de sandálias quase ortopédicas, no estilo Birkenstock. Enquanto isso, no mesmo ano, Raf Simons apresentou, em parceria com a Adidas, o tênis Ozweego, provavelmente o primeiro dos dad sneakers na moda. Pula para a temporada de inverno 2017 e eles de fato aconteceram graças ao Triple S, proposto por Demna Gvasalia na Balenciaga. Desde então, cá estamos, ainda entre esse show de horrores protagonizado por sapatos duvidosos, e agora, em sua apoteose, mais estranhos do que nunca.

Na temporada de inverno 2021, nenhuma marca saiu impune. De Balenciaga a Chanel, os chamados ugly shoes são uma realidade, quer você ame ou odeie, e, sinceramente, pouco importa de qual lado se está. O fato é que você está prestes a se deparar com muitos deles por aí. A princípio, até pode revirar os olhos, mas seguimos a teoria de que esse é um processo de três etapas.

A primeira é a negação: você ainda está confuso sobre por que alguém, em sã consciência, escolheria calçar um modelo com divisórias para os dedos. Depois vem o desprezo profundo: a existência onipresente dos sapatos feios faz querer gritar por Manolo Blahnik. Até que, enfim, chega a aceitação: depois de pensar “se eles fossem um pouco menos inchados, eu até poderia gostar”, quando menos esperar, você já vai estar desejando um.

Caso ainda não esteja convencido, estamos aqui para acelerar essas etapas e provar como os sapatos feios não são tão feios assim.


Primeiramente, feio para quem?

Sim, nós sabemos, em pleno 2021, feio não é bem uma palavra que você queira ouvir – afinal, já basta o mundo. Porém, quando se trata de moda, por incrível que pareça, a implicação nem sempre é depreciativa. “Nada é tão chato quanto algo bonito”, disse Dries Van Noten em entrevista à ELLE estadunidense, lá em 2012. “Prefiro coisas feias, coisas que surpreendam”, complementa. Por muitas temporadas, o designer belga iniciou coleções se baseando em elementos considerados estranhos por ele para que, assim, se desafiasse a torná-los desejáveis. Dries não é o único a fazer isso.

Miuccia Prada, Alessandro Michele e Demna Gvasalia também fazem parte da lista formada por estilistas empenhados em investigar a feiura, o que nem sempre costumava ser algo tão comum. Enquanto a beleza foi minuciosamente examinada ao longo da história, o feio nunca recebeu a mesma atenção, sendo colocado apenas como o oposto do belo. Essa não é a definição mais justa, até porque apontá-lo como um contraste às habituais ideias relacionadas ao bom gosto é, na verdade, evidenciar uma de suas boas qualidades. Nesse sentido, o feio subverte o status quo, desafia as convicções impostas por autoridades invisíveis e, de quebra, se movimenta como uma aversão ao básico.

Esse último ponto, aliás, faz toda a diferença quando o assunto é moda. Uma parte considerável da atração pelo feio nasce, justamente, do anseio desesperado de, ao menos, tentar ser único. Enquanto as nossas vidas estão em exibições constantes e somos todos incitados pelos mesmos estímulos, a homogeneização dos estilos e estéticas opera em alta velocidade. Uma hora, a conta do tédio coletivo chegaria e, agora, ser apenas mais um na multidão (ou, na linguagem da moda, uma basic bitch) parece o suficiente para ser condenado ao ostracismo moderno.

Já faz mais de um ano que os nossos pés mal tocam uma sola e, levando isso em conta, essa até pode parecer uma tendência improvável. Entretanto, esse tempo foi o necessário para as marcas repensarem as suas ideias acerca dos calçados e ainda para as especialistas em conforto ganharem os holofotes. A segunda opção é o caso da Crocs (sim, você não leu errado). Alvo de piadas de quase todos e eleita como uma das 50 piores invenções pela Time, essa empresa estadunidense foi a única grande marca de sapatos a apresentar, em 2020, um aumento expressivo nas vendas.

De acordo com o The New York Times, a Crocs viu as suas vendas crescerem 48%. Diante de um ano no qual o sapato não era nem mesmo um item necessário, não há como negar: o número é impressionante. O isolamento, claro, não deixa de ter a sua responsabilidade na equação. Ao longo dos tantos meses em casa, clamando por conforto, o modelo proposto pode mesmo ser ideal para combinar com moletons. No entanto, alcançar novos públicos e conquistar o seu espaço na moda já era um esforço antigo por parte da empresa e só agora, entre novas estratégias e ações, finalmente, parece ter resultados efetivos.

A primeira aparição da Crocs na moda aconteceu na passarela de Christopher Kane, durante a temporada de verão 2017. “Amo como esses sapatos são vistos como feios e nada femininos”, disse o estilista britânico ao The Business of Fashion, na época. Uma temporada depois, no verão 2018, foi a vez de a Balenciaga apresentar a sua versão do calçado (agora com plataforma) e, se Kane não conseguiu revirar as opiniões coletivas acerca do sapato, talvez Demna Gvasalia tivesse esse poder. No entanto, não foi exatamente o que aconteceu. A peça ganhou o carimbo kitschy, dominou todas as manchetes, viralizou nas mídias sociais, mas acabou encarada mais como um meme do que, de fato, como digna de desejo.

Como a dinâmica volátil da internet já nos deixa esperar, o frisson morreu em poucas semanas e rapidamente a Crocs já voltava ao seu lugar. Ou, ao menos, até 2020 chegar. Após o boom de vendas durante o isolamento, a empresa soube traçar os seus passos como poucos. Lançou uma colaboração com o Bad Bunny, em seguida outra com Justin Bieber (ambas esgotadas em minutos) e, em paralelo, investiu em publicidade no TikTok, contratando os influenciadores favoritos por lá. Agora, a plataforma já está dominada de conteúdo orgânico produzido por integrantes da Geração Z, que mostram como estilizar o sapato – e não, os looks exibidos por eles não são com moletons para ficar em casa.

Diferentemente do Brasil, em outros lugares do globo, o processo de vacinação está avançado e, para alguns países, a possibilidade de retomar a vida com segurança começa a surgir. E é aí que as vendas da Crocs até poderiam voltar aos seus antigos números, mas não é o que a marca planeja nem o que está acontecendo. No primeiro trimestre de 2021, a empresa já atingiu a receita recorde de 460 milhões de dólares. A notícia, aliás, veio logo após um par de Crocs ter sido visto em pleno tapete vermelho do Oscar, nos pés do músico Questlove.

A obsessão por sapatos de espuma é um plot twist no mínimo inesperado, mas, em meio à uma pandemia global, eles já não parecem mais tão assustadores.


O mais temido

Já faz mais de um ano que os nossos pés mal tocam uma sola e, levando isso em conta, essa até pode parecer uma tendência improvável. Entretanto, esse tempo foi o necessário para as marcas repensarem as suas ideias acerca dos calçados e ainda para as especialistas em conforto ganharem os holofotes. A segunda opção é o caso da Crocs (sim, você não leu errado). Alvo de piadas de quase todos e eleita como uma das 50 piores invenções pela Time, essa empresa estadunidense foi a única grande marca de sapatos a apresentar, em 2020, um aumento expressivo nas vendas.

De acordo com o The New York Times, a Crocs viu as suas vendas crescerem 48%. Diante de um ano no qual o sapato não era nem mesmo um item necessário, não há como negar: o número é impressionante. O isolamento, claro, não deixa de ter a sua responsabilidade na equação. Ao longo dos tantos meses em casa, clamando por conforto, o modelo proposto pode mesmo ser ideal para combinar com moletons. No entanto, alcançar novos públicos e conquistar o seu espaço na moda já era um esforço antigo por parte da empresa e só agora, entre novas estratégias e ações, finalmente, parece ter resultados efetivos.

A primeira aparição da Crocs na moda aconteceu na passarela de Christopher Kane, durante a temporada de verão 2017. “Amo como esses sapatos são vistos como feios e nada femininos”, disse o estilista britânico ao The Business of Fashion, na época. Uma temporada depois, no verão 2018, foi a vez de a Balenciaga apresentar a sua versão do calçado (agora com plataforma) e, se Kane não conseguiu revirar as opiniões coletivas acerca do sapato, talvez Demna Gvasalia tivesse esse poder. No entanto, não foi exatamente o que aconteceu. A peça ganhou o carimbo kitschy, dominou todas as manchetes, viralizou nas mídias sociais, mas acabou encarada mais como um meme do que, de fato, como digna de desejo.

Como a dinâmica volátil da internet já nos deixa esperar, o frisson morreu em poucas semanas e rapidamente a Crocs já voltava ao seu lugar. Ou, ao menos, até 2020 chegar. Após o boom de vendas durante o isolamento, a empresa soube traçar os seus passos como poucos. Lançou uma colaboração com o Bad Bunny, em seguida outra com Justin Bieber (ambas esgotadas em minutos) e, em paralelo, investiu em publicidade no TikTok, contratando os influenciadores favoritos por lá. Agora, a plataforma já está dominada de conteúdo orgânico produzido por integrantes da Geração Z, que mostram como estilizar o sapato – e não, os looks exibidos por eles não são com moletons para ficar em casa.

Diferentemente do Brasil, em outros lugares do globo, o processo de vacinação está avançado e, para alguns países, a possibilidade de retomar a vida com segurança começa a surgir. E é aí que as vendas da Crocs até poderiam voltar aos seus antigos números, mas não é o que a marca planeja nem o que está acontecendo. No primeiro trimestre de 2021, a empresa já atingiu a receita recorde de 460 milhões de dólares. A notícia, aliás, veio logo após um par de Crocs ter sido visto em pleno tapete vermelho do Oscar, nos pés do músico Questlove.

A obsessão por sapatos de espuma é um plot twist no mínimo inesperado, mas, em meio à uma pandemia global, eles já não parecem mais tão assustadores.


O luxo tem muito a ver com isso

Muito além da Crocs, no entanto, as últimas temporadas já vinham nos mostrando como o apocalipse dos sapatos feios logo estaria entre nós. No inverno 2021, isso se intensificou: o equilíbrio era um tanto quanto desequilibrado, as regras estavam mais frouxas e o tradicionalismo mais parecia com uma armadilha. O resultado disso? Bom… Uma profusão de detalhes conflitantes, plataformas perturbadoras, silhuetas grosseiras, porém estranhamente atraentes. Seja para incitar a atenção das mídias sociais ou para se tornar um hit de vendas, as etiquetas responsáveis pela tendência sabem bem o que estão fazendo.

“Em toda coleção, o meu desafio é encontrar a linha onde o feio se torna bonito ou o bonito se torna feio”, contou Demna Gvasalia durante um painel de moda. À frente da direção criativa da Balenciaga, de início o estilista georgiano foi um tanto quanto incompreendido. Para alguns, as suas silhuetas estavam distantes dos códigos da marca e o seu tom de ironia parecia um pouco além da conta. Entretanto, essas não são características exatamente novas.

Ao longo dos anos 1950 e 60, o próprio Cristóbal Balenciaga foi o responsável por popularizar o conceito francês de jolie-laide, uma pessoa considerada feia e bonita ao mesmo tempo. Ou seja, ele olhava para a beleza a partir de um espectro complexo, e não apenas por uma lente binária. Sabendo disso, torna-se mais fácil entender de onde vêm a parceria com a Crocs, os dad sneakers e, mais recentemente, as botas medievais propostas por Demna. Essas últimas, aliás, foram desenvolvidas por um especialista em reprodução de armaduras, no sul da França, e já se tornaram as favoritas de Cardi B. Em tempos em que nem a sobrevivência é garantida, um sapato de aço parece apropriado.

Para Schiaparelli, os sapatos feios também não são uma novidade. Obcecada pelo surrealismo, Elsa ultrapassou os limites do suposto bom gosto inúmeras vezes e, hoje, Daniel Roseberry segue os seus passos com louvor. “Essa é uma moda para quem ama moda”, disse ele ao WWD a respeito do inverno 2021 da casa. Inspirado pelo corpo humano, o estadunidense se aprofundou nos estudos de anatomia e, até pode ter coberto os pés com botas pesadas, mas fez questão de esculpir dedos superiores em ouro. “É estranho, mas é estranho o suficiente?” – se essa era a pergunta que ecoava na mente de Elsa, Daniel também parece empenhado em questioná-la.

Outro obcecado por ugly shoes é Matthew M. Williams. Na sua coleção de estreia à frente da Givenchy, o designer apresentou sandálias com divisórias para os dedos. Apesar de ter sido crucificado pela internet, a sua referência vinha do próprio arquivo da marca, ainda nos tempos de McQueen. Agora, para o inverno 2021, o designer não foi tão longe, porém, a sua nova opção é ainda duvidosa ou, como definida por Matthew, “extraterrestre”.

A Chanel, mesmo entre todo o seu tradicionalismo, também não saiu ilesa da tendência. Olhando para os esportes de inverno, Virginie Viard optou por botas de esqui, mas não como nos moldes habituais. Elas eram vibrantes, peludas e um tanto quanto over. Muitos irão defini-las como feias, ou pior do que isso? Provavelmente, mas nunca como insossas. Para o bem ou para o mal, os designs feios têm um caráter que jamais podem ser ignorados e, quanto mais se olha, menos elusivas parecem se tornar.

Se você acha que já atingimos o auge da feiura, espere até chegar aqui. Feitas a partir de tecidos e silicones descartados, as botas da italiana AVAVAV superam todas as expectativas imagináveis. Até podem não ser as mais confortáveis, entretanto, se por muito tempo a indústria de calçados impôs ideias fetichistas sobre qual tipo de sapato uma mulher deve usar, Beate Karlsoon, fundadora da marca, deseja subverter todas elas – e está funcionando.

A coleção de estreia, apresentada no início deste ano, esgotou quase imediatamente e, claro, a produção é ainda limitada. Porém é impossível não sentir vontade de conhecer quem são essas clientes, que, como a própria etiqueta inspira, se vestem apenas para si mesmas.

A maioria de nós até pode ter demorado para entender os ugly shoes, mas, enquanto eles se mostrarem persistentes, ainda haverá tempo para arriscar – e como haverá. Sejamos sinceros: não há tantas possibilidades para a reinvenção de um escarpim, mas existem infinitas maneiras de criar algo feio, caótico e que derrube as tradições do belo. Até porque exercer autoridade por meio de noções de bom ou mau gosto já não parece mais tão conectado com o agora.

Tênis branco? Sandália de tiras? Salto bloco? Essas são tendências legais, mas qualquer um de nós poderia tê-las facilmente imaginado. Quem poderia, no entanto, prever as botas medievais, os dedos dourados ou até mesmo a Crocs? Mesmo entre os seus conceitos escorregadios, há algo de orgânico nos sapatos feios. Sem o feio, nunca nem mesmo teríamos conhecido a beleza. Talvez ela tenha ficado tão óbvia que o único caminho restante para a moda seguir era o feio.


E vamos de subversão

Se você acha que já atingimos o auge da feiura, espere até chegar aqui. Feitas a partir de tecidos e silicones descartados, as botas da italiana AVAVAV superam todas as expectativas imagináveis. Até podem não ser as mais confortáveis, entretanto, se por muito tempo a indústria de calçados impôs ideias fetichistas sobre qual tipo de sapato uma mulher deve usar, Beate Karlsoon, fundadora da marca, deseja subverter todas elas – e está funcionando.

A coleção de estreia, apresentada no início deste ano, esgotou quase imediatamente e, claro, a produção é ainda limitada. Porém é impossível não sentir vontade de conhecer quem são essas clientes, que, como a própria etiqueta inspira, se vestem apenas para si mesmas.

A maioria de nós até pode ter demorado para entender os ugly shoes, mas, enquanto eles se mostrarem persistentes, ainda haverá tempo para arriscar – e como haverá. Sejamos sinceros: não há tantas possibilidades para a reinvenção de um escarpim, mas existem infinitas maneiras de criar algo feio, caótico e que derrube as tradições do belo. Até porque exercer autoridade por meio de noções de bom ou mau gosto já não parece mais tão conectado com o agora.

Tênis branco? Sandália de tiras? Salto bloco? Essas são tendências legais, mas qualquer um de nós poderia tê-las facilmente imaginado. Quem poderia, no entanto, prever as botas medievais, os dedos dourados ou até mesmo a Crocs? Mesmo entre os seus conceitos escorregadios, há algo de orgânico nos sapatos feios. Sem o feio, nunca nem mesmo teríamos conhecido a beleza. Talvez ela tenha ficado tão óbvia que o único caminho restante para a moda seguir era o feio.