RAIO-X
DE UM DESFILE

Chanel Resort 2022

Por Luigi Torre
No fim da década de 1950, Jean Cocteau gravou um de seus últimos trabalhos artísticos, o filme O testamento de Orfeu, lançado em 1960. O filme faz jus às inclinações surrealistas que permeiam toda a obra do artista, poeta, dramaturgo, escritor e cineasta francês, seja na narrativa, seja nas imagens. Principalmente nas imagens.
Para ter uma ideia do que estamos falando, pense na figura do próprio Cocteau, no papel de Orfeu, adentrando um espelho. Ou então na cena do homem-cavalo, gigantesco e todo de preto, caminhando entre as pedras brancas de uma galeria em ruínas.
Agora corta para 2021, troca a figura mítica por uma jovem modelo, com um tailleur preto e branco de linhas e silhueta gráficas e contrastantes (entre si e com o cenário). Qualquer semelhança não é mera coincidência. Para a coleção resort 2022 da Chanel, a diretora criativa Virginie Viard se debruçou sobre o filme mencionado acima, além de outras obras do artista francês.
Um bom exemplo são as estrelas que aparecem projetadas nas paredes da locação do desfile ou bordadas e estampadas nas roupas e nos acessórios da coleção. Quase toda ilustração, pintura ou desenho de Cocteau vinha acompanhada do tal pentagrama depois do seu nome.
Tem também as pombas. Elas são recorrentes nas obras do francês, são referenciadas de forma não óbvia no filme e servem de motivo para os bordados de alguns tricôs do resort 2022. Ah, isso sem falar no final da apresentação, né?
Existem outras referências mais sutis ao trabalho de Cocteau: o traço de muitas estampas e bordados são diretamente inspirados no das ilustrações do artista.
Alguns prints, como os de rostos sem contorno, remetem ao viés surrealista de sua arte
As flores merecem menção honrosa. Além de ser objeto de pinturas e ilustrações do francês, a flor de hibisco tem um significado especial na narrativa de O testamento de Orfeu, mas sem spoilers, né?
E tem o cenário: o Carrières de Lumières, no sul da França, a mesma locação de O testamento de Orfeu, um dos filmes favoritos de Virginie.
Um detalhe importante aqui é a amizade entre Coco Chanel e Jean Cocteau. Eram mais que amigos, friends. BFFs até. Um vivia na casa do outro e as inspirações e influências estéticas e conceituais se cruzavam com frequência.
Chanel, aliás, foi a responsável pelo figurino de muitas das peças criadas e dirigidas por Cocteau. Uma dessas criações, uma espécie de macacão feito de bandagens (apresentado na peça Édipo Rei, em 1930), foi reinterpretada por Virginie nessa mais recente coleção.
De volta à amizade entre Coco e Jean, ambos eram contestadores por excelência das convenções e tradições vigentes, desde bom gosto e valores socioculturais até o tipo de material usado em suas criações. E isso é importante para entender a evolução do trabalho de Virginie à frente da maison. 
Carta que Jean Cocteau enviou para Coco Chanel, em 1926.
Com agradecimento especial ao Comitê Jean Cocteau
Desde que assumiu o posto, ela fala sobre aproximar a Chanel das mulheres – ou pelo menos daquelas que consomem a marca. E foi um corte bem seco entre sua proposta e aquela de seu predecessor, Karl Lagerfeld. O alemão era chegado a uma pirotecnia performática – grandiosa e genial, é verdade, porém muitas vezes com resultado um tanto distante da realidade.
A francesa vai pelo caminho oposto, pois gosta de intimidade, olho no olho e até daquele roçar de ombros com desconhecidos na pista de dança, pelo que indicam algumas coleções recentes (o inverno 2020 de alta-costura e o 2021 de prêt-à-porter são inspirados ou ambientados em clima de buatchy).
A ideia, vai ao encontro de outros desejos bem latentes no momento: o contato físico, a festa e o ritual de se vestir (ou despir) que os precede (ou sucede). Daí o clima rocker do resort 2022, com silhueta gráfica, cores contrastantes, detalhes metalizados, correntes e uma dose de sensualidade um pouco mais explícita no repertório recente de Virginie.
Vide as meias arrastão, os comprimentos curtos (para saias e tops), a bolsa presa na coxa e a beleza de olhos pretos bem marcados.
Esfregar ombros com estranhos em festinhas ainda não é de bom tom por aqui. Já em algumas partes mais vacinadas e menos negacionistas do mundo, a ideia é possível. Quando essas peças começarem a chegar às lojas (entre o fim deste ano e início do próximo), mais ainda.
Para quem precisa esperar um pouco mais para retomar o agito, como nós, tem os conjuntinhos de tricô, calças esvoaçantes e uma boa gama de camisetas e regatas deluxe. Mas também não há nada de errado em se montar em casa. Inclusive, eu recomendo.
Fotos Divulgação e Reprodução