Rir para transformar
Expoentes do humor político no Brasil hoje, Marcelo Adnet, Gregorio Duvivier e Ilana Kaplan defendem a comédia em meio à crise como uma ferramenta de reflexão e de mudança social.
por Audrey Furlaneto ilustração Lipe Oliveira
Expoentes do humor político no Brasil hoje, Marcelo Adnet, Gregorio Duvivier e Ilana Kaplan defendem a comédia em meio à crise como uma ferramenta de reflexão e de mudança social.
por Audrey Furlaneto ilustração Lipe Oliveira
Marcelo Adnet começou a narrar de brincadeira, como se fosse futebol, as sessões da comissão parlamentar de inquérito que investiga a atuação do governo na pandemia da Covid-19. O que surgiu como um post, no entanto, logo decolou, e sua imitação de Galvão Bueno seguindo os passes entre senadores na CPI migrou das redes sociais para a Globoplay. Em pouco tempo, o programa Adnet na CPI se tornou um dos grandes ícones do humor político em meio à tragédia da pandemia no Brasil.
“É bastante difícil fazer humor hoje, principalmente com temas tão delicados, mas a gente já tem certeza de que não é o humor que vai matar ou salvar as pessoas”, afirma à ELLE. Para Adnet, o humor se tornou uma arma poderosa, já que os argumentos parecem pouco eficazes. “Quando você usa um argumento lógico com uma pessoa que defende o presidente com argumentos de quinta série, o seu não vale nada. Em um cenário como esse, o humor funciona e muito.”
Outro expoente da arte de usar a comédia como forma de crítica social, Gregorio Duvivier firma a quinta temporada de seu Greg news, no ar na HBO, com um pé no noticiário político e outro no humor. Feito por um time de jornalistas – ou, como ele define, “um conjunto de pessoas que queria trazer a realidade política e as discussões para perto do espectador” –, o programa é contundente no posicionamento, mas sem perder a piada jamais. Isso porque, para Duvivier, o humor é mais do que ferramenta de reflexão e resistência. É sobretudo um “instrumento de união”. “Quando as pessoas riem de uma mesma coisa, elas se tornam uma sociedade. Um país é um conjunto de pessoas que ri de coisas parecidas”, defende.
Também fundamentada em dados – da porcentagem de vacinados no Brasil ao número macabro de vítimas da Covid –, a atriz Ilana Kaplan criou uma personagem no Instagram que costura humor e política. Os vídeos de Keila Mellman, uma arquiteta que se reinventou na pandemia e dá consultoria de etiqueta nas redes sociais, tiveram quase 5 milhões de visualizações apenas no Instagram (em dez esquetes, publicadas entre março e junho de 2021). A personagem responde a perguntas (fictícias) de espectadores que, por exemplo, têm dúvidas sobre postar ou não as festas que frequentam durante a maior crise sanitária da história recente do país. “Quer postar? Posta. É de bom-tom? Não é de bom-tom”, responde a consultora, ajeitando a franja para a câmera do celular. Kaplan, uma atriz de longeva e premiada carreira no teatro, lembra que Shakespeare criticava os reis por meio do personagem do bobo. Não por acaso, ela explica: “A comunicação, no humor, é direta. A comédia cutuca, incomoda, mas critica de um jeito mais leve”.
Três dos principais expoentes do humor político no Brasil em meio à pandemia falam à ELLE sobre seus processos de criação e a importância do riso em tempos de crise.
“É bastante difícil fazer humor hoje, principalmente com temas tão delicados, mas a gente já tem certeza de que não é o humor que vai matar ou salvar as pessoas. Não é uma piada, neste momento da pandemia, que vai ferir alguém. Até porque as piadas que eu faço são cobrando o poder. Nenhuma é com o povo brasileiro. Todas são com os poderosos que, neste momento, têm, através da CPI, um poder imenso de decidir nosso futuro. Minha crítica é em relação aos políticos, e isso é muito claro. Quem faz graça do povo é o presidente, que imita pessoas com falta de ar, que fala que quem morre é maricas ou que, se a doença pega num ‘bundão da imprensa’, mata mais do que se pegar nele ou nos apoiadores dele. É muito difícil manter a sanidade no meio de tudo isso porque o humor se torna um ato político nessa colcha de retalhos que se apresenta agora com as tecnologias digitais. É uma crítica e uma fiscalização do poder, que é exatamente o que o povo deve fazer.”
Adnet na CPI“Antes da criação do programa Adnet na CPI, eu assistia as sessões e, quando tinha um momento mais acalorado, começava a filmar e brincar de dublar. Em um desses momentos, em vez de fazer um post, fiz uma live. Em seguida, a Globoplay me convidou a transformar isso num programa. Então, meu método de trabalho mudou. Um editor de imagens me manda os melhores momentos já separados, eu os narro. É uma coisa meio ao vivo. O narrador tem isso, afinal. Nenhum narrador na história, o Galvão Bueno, por exemplo, teve a oportunidade de ver o gol para depois narrar. Na CPI, é igual. Não posso saber muito o que está vindo para não estragar a dinâmica.”
Humor político“Em outros tempos, é possível fazer humor não político. Em tempos de pandemia, de tragédia, de mais de meio milhão de mortes e com o número subindo todo dia, tudo vira um ato político. Se neste momento eu botar um nariz de palhaço e jogar torta na cara, embora isso não seja humor político, é uma manifestação política porque é uma aposta na despolitização. Fazer humor em cima de algo que não tem nenhuma relação com o que está acontecendo é um humor pão e circo. Isso não é problema, não é proibido, e todos nós estamos abertos a rir de algo totalmente desconectado, mas é necessário que alguém ou um grupo de pessoas estejam cumprindo essa função do humor político. Em suma, existe humor de todo estilo, de todo jeito, para todo momento. Que bom que outros pensam diferente de mim, que podemos ter uma produção que não é monótona, mas ampla, com pessoas com diferentes vocações e visões de humor. Mas acaba que, num momento como este, tudo é político. No mais, a vida é um ato político.”
“É muito importante que eu delimite que essa é a minha visão de humor. Falo pela minha criação e, ao mesmo tempo, sou totalmente democrático no sentido que não acho que as pessoas devam ser censuradas pelo que fazem. A não ser que o humor seja criminoso. Mas, se você não cometer nenhum crime com seu humor, tudo é válido."
Posicionamento“Ficar de fora das discussões ou me abster é um luxo que eu não vou me dar, e é um conforto que eu poderia me dar. Sou um cara bem-sucedido, construí tudo o que eu tenho e poderia tranquilamente dar uns três ou quatro passos para trás, me acovardar um pouquinho para ganhar mais dinheiro das marcas e não perder apoio de um público de direita ou extrema direita, que acaba se sentindo ofendido, chateado ou discorda dos posicionamentos que estou tomando. Então, seria mais fácil para mim não ter uma manifestação política. Mas eu não aguento, não sou um ser apolítico. Não sou uma pessoa que não se preocupa com o outro. Sou um ser empático. Penso no bem coletivo e, se as pessoas estão passando dificuldades no mesmo país que eu, no mesmo planeta que eu, fico preocupado com isso, me abala. Sou um ser político, mas não quero obrigar ninguém a ser.”
O governo atual“É um governo que aposta num humor baixo, grosseiro, machista, preconceituoso, racista e que tem vários métodos, como dar apelidos às pessoas. O Felipe Neto, por exemplo, virou Nelipe Feto. Eu virei o Marcelo Rouanet. O senador Omar Aziz agora virou Omar Azia, o João Doria é o Calcinha Apertada. Tudo tem vocabulário próprio, dão apelidos a quem critica, quem não está ao lado deles. É uma tática bastante infantil, mas que funciona e continua sendo usada, inclusive pelo presidente, que repete esses apelidos e bota fogo na fogueira. Quando você usa um argumento lógico com uma pessoa que defende o presidente com argumentos de quinta série, o seu não vale nada. Quando usam uma resposta infantil, o argumento vai perdendo a validade, e isso vai irritando também a oposição. Parece que nada, nenhum argumento funciona. Em um cenário como esse, o humor funciona e muito. Muita gente não se incomoda de o presidente ser chamado de torturador ou fascista, mas se incomoda em receber um apelido, ser alvo de uma piada, de um meme ou de uma paródia. Tornaram-se insensíveis a argumentos, numa toada muito previsível de anticiência, anticultura. O humor acaba sendo uma arma bastante poderosa.”
“Humor político é uma redundância. O humor é uma atividade política, até porque o homem é um animal político, e o humor é uma característica definidora do ser humano. A gente não apenas vive. A gente pensa sobre o que vive e ri das nossas experiências. Do que a gente ri, como a gente ri, isso é mais político ainda.”
Limites do humor“Não existem temas proibidos. Quando falamos em humor responsável, parece que a gente proíbe alguns temas: ‘Não se pode falar sobre racismo se você for branco’. Mas não existem proibições, e sou contra todas elas. O humor se alimenta de proibição. O que existe é um pensamento, uma reflexão sobre como estamos rindo daquilo. Será que estamos usando o humor como uma ferramenta de opressão, de perpetuação de preconceitos e desigualdades? Será que esse humor está servindo às desigualdades? Millôr Fernandes (1923-2012) tinha uma frase boa que é: ‘Quem se curva aos opressores mostra a bunda aos oprimidos’. Será que a gente está mostrando a bunda aos oprimidos? Para quem estamos nos curvando? Essa pergunta é muito importante de fazer. Se você não a faz, não está deixando de fazer humor político, mas está fazendo humor despolitizado, o que não significa ser apolítico. Ser despolitizado é uma forma de fazer política – a meu ver, a forma mais burra de participar da política.”
Greg news“O Greg news é um projeto que não é só meu, mas da Alessandra Orofino, e que tem uma redação grande – um conjunto de pessoas que queria tornar a política mais acessível, trazer a realidade política e as discussões para perto do espectador. O humor aproxima, tem o compromisso de ser compreendido, e isso é o que falta na discussão política hoje. As pessoas não se sentem contempladas. A política é sempre um bonde andando. Você vai tentar pegar, mas, para entender o jornal de hoje, tem que ter lido o de ontem. É muito difícil começar do zero. O jornal é para entendidos, e, sobretudo para o leitor jovem, não é sedutor, a não ser nas crônicas, que, em geral, são para todos os leitores. Comecei a ler o jornal pelas crônicas, para ler o Luis Fernando Verissimo todos os dias, e foi minha porta de entrada para as notícias. Acho que o Greg news é uma forma de crônica, uma forma de trazer para as notícias quem, em geral, não se sente muito seduzido por elas. O humor é a ferramenta de sedução.”
A força do humor“O humor é uma ferramenta que, na verdade, serve para não confrontar diretamente, já que bater de frente muitas vezes é a maneira menos eficiente de confrontar. Millôr também dizia que o humorista nunca atira para matar, e eu acho isso. O escritor britânico G. K. Chesterton (1874-1936) dizia que, quando está todo mundo tentando arrombar uma porta, o humor entra por uma fresta. É, então, uma maneira de não arrombar portas, mas de entrar nos recintos trancados sem arrombar fechaduras. O humor é útil porque acessa lugares até então inacessíveis.”
“Acho que ele é também uma ferramenta de reflexão e resistência. Mas, para mim, é sobretudo um instrumento de união, mais do que de separação. Quando as pessoas riem de uma mesma coisa, elas se tornam uma sociedade. Um país é um conjunto de pessoas que ri de coisas parecidas. Sempre achei muito mágico isso de ir para outro lugar do Brasil fazer uma peça. Já fui fazer meu monólogo no Acre e foi mágico ver que as piadas funcionavam assim como no Rio. E as que não funcionavam no Rio também não funcionavam lá, e ver que nós somos um país e rimos de coisas muito parecidas. O humor tem esta função: quando uma plateia toda ri da mesma coisa, ela se torna irmã, você vira irmão das pessoas que não conhece. Para mim, a principal função do humor é essa. Toda amizade começa com uma piada compartilhada, uma piada interna. O humor opera esse milagre de criar laços e por isso acho que ele é tão necessário hoje no Brasil. A gente é um país que perdeu os laços, a unidade. Quem sabe o humor pode voltar a nos unir.”
“O tipo de comentário que me deixa mais feliz sobre o Greg news é quando alguém diz: ‘Não concordo com nada, mas consigo achar graça no seu programa’. Isso é muito legal porque você só consegue concordar com alguém depois de gostar. Concordar é posterior a gostar, e o humor é uma forma de fazer as pessoas criarem laços afetivos. É muito mais fácil convencer alguém depois que o laço foi construído. A conversão total é impossível e nem sei se é desejável. Sei que não falo com o bolsonarista fanático, mas falo com uma quantidade grande de gente do nosso campo, embora deva ter alguns bolsonaritsas no público. Mais do que converter os bolsonaristas, a gente alimenta pessoas do nosso campo de piadas, que vão tornar a vida deles talvez mais alegres, e de argumentos, que talvez ajudem a converter os bolsonaristas próximos. A gente convence muito mais facilmente quem está próximo da gente. Talvez eu não fale com o bolsonarista fanático, mas talvez fale com o filho do bolsonarista fanático, que, ao ver o programa, pode chegar no pai munido de piadas ou de maneiras diferentes de abordar os assuntos. É isso que muda. Os laços de afeto é que vão mudar o Brasil, restabelecer a paz familiar rompida desde 2016, pelo menos. Para isso acontecer, precisamos cuidar mesmo desses laços, e isso não significa anular as diferenças, mas trazer para junto. O humor é uma forma ótima de fazer isso. Eu, pelo menos, sempre usei o humor para fazer amigos e refazer amizades. Quem sabe o humor não vai reunir o Brasil e operar esse milagre de fazer a gente voltar a se sentir morando num país só, e não em países diversos e opostos. Tomara que sim.”
“Humor político é uma redundância. O humor é uma atividade política, até porque o homem é um animal político, e o humor é uma característica definidora do ser humano. A gente não apenas vive. A gente pensa sobre o que vive e ri das nossas experiências. Do que a gente ri, como a gente ri, isso é mais político ainda.”
Limites do humor“Não existem temas proibidos. Quando falamos em humor responsável, parece que a gente proíbe alguns temas: ‘Não se pode falar sobre racismo se você for branco’. Mas não existem proibições, e sou contra todas elas. O humor se alimenta de proibição. O que existe é um pensamento, uma reflexão sobre como estamos rindo daquilo. Será que estamos usando o humor como uma ferramenta de opressão, de perpetuação de preconceitos e desigualdades? Será que esse humor está servindo às desigualdades? Millôr Fernandes (1923-2012) tinha uma frase boa que é: ‘Quem se curva aos opressores mostra a bunda aos oprimidos’. Será que a gente está mostrando a bunda aos oprimidos? Para quem estamos nos curvando? Essa pergunta é muito importante de fazer. Se você não a faz, não está deixando de fazer humor político, mas está fazendo humor despolitizado, o que não significa ser apolítico. Ser despolitizado é uma forma de fazer política – a meu ver, a forma mais burra de participar da política.”
Greg news“O Greg news é um projeto que não é só meu, mas da Alessandra Orofino, e que tem uma redação grande – um conjunto de pessoas que queria tornar a política mais acessível, trazer a realidade política e as discussões para perto do espectador. O humor aproxima, tem o compromisso de ser compreendido, e isso é o que falta na discussão política hoje. As pessoas não se sentem contempladas. A política é sempre um bonde andando. Você vai tentar pegar, mas, para entender o jornal de hoje, tem que ter lido o de ontem. É muito difícil começar do zero. O jornal é para entendidos, e, sobretudo para o leitor jovem, não é sedutor, a não ser nas crônicas, que, em geral, são para todos os leitores. Comecei a ler o jornal pelas crônicas, para ler o Veríssimo todos os dias, e foi minha porta de entrada para as notícias. Acho que o Greg news é uma forma de crônica, uma forma de trazer para as notícias quem, em geral, não se sente muito seduzido por elas. O humor é a ferramenta de sedução.”
A força do humor“O humor é uma ferramenta que, na verdade, serve para não confrontar diretamente, já que bater de frente muitas vezes é a maneira menos eficiente de confrontar. Millôr também dizia que o humorista nunca atira para matar, e eu acho isso. O escritor britânico G. K. Chesterton (1874-1936) dizia que, quando está todo mundo tentando arrombar uma porta, o humor entra por uma fresta. É, então, uma maneira de não arrombar portas, mas de entrar nos recintos trancados sem arrombar fechaduras. O humor é útil porque acessa lugares até então inacessíveis.”
“Acho que ele é também uma ferramenta de reflexão e resistência. Mas, para mim, é sobretudo um instrumento de união, mais do que de separação. Quando as pessoas riem de uma mesma coisa, elas se tornam uma sociedade. Um país é um conjunto de pessoas que ri de coisas parecidas. Sempre achei muito mágico isso de ir para outro lugar do Brasil fazer uma peça. Já fui fazer meu monólogo no Acre e foi mágico ver que as piadas funcionavam assim como no Rio. E as que não funcionavam no Rio também não funcionavam lá, e ver que nós somos um país e rimos de coisas muito parecidas. O humor tem esta função: quando uma plateia toda ri da mesma coisa, ela se torna irmã, você vira irmão das pessoas que não conhece. Para mim, a principal função do humor é essa. Toda amizade começa com uma piada compartilhada, uma piada interna. O humor opera esse milagre de criar laços e por isso acho que ele é tão necessário hoje no Brasil. A gente é um país que perdeu os laços, a unidade. Quem sabe o humor pode voltar a nos unir.”
“O tipo de comentário que me deixa mais feliz sobre o Greg news é quando alguém diz: ‘Não concordo com nada, mas consigo achar graça no seu programa’. Isso é muito legal porque você só consegue concordar com alguém depois de gostar. Concordar é posterior a gostar, e o humor é uma forma de fazer as pessoas criarem laços afetivos. É muito mais fácil convencer alguém depois que o laço foi construído. A conversão total é impossível e nem sei se é desejável. Sei que não falo com o bolsonarista fanático, mas falo com uma quantidade grande de gente do nosso campo, embora deva ter alguns bolsonaritsas no público. Mais do que converter os bolsonaristas, a gente alimenta pessoas do nosso campo de piadas, que vão tornar a vida deles talvez mais alegres, e de argumentos, que talvez ajudem a converter os bolsonaristas próximos. A gente convence muito mais facilmente quem está próximo da gente. Talvez eu não fale com o bolsonarista fanático, mas talvez fale com o filho do bolsonarista fanático, que, ao ver o programa, pode chegar no pai munido de piadas ou de maneiras diferentes de abordar os assuntos. É isso que muda. Os laços de afeto é que vão mudar o Brasil, restabelecer a paz familiar rompida desde 2016, pelo menos. Para isso acontecer, precisamos cuidar mesmo desses laços, e isso não significa anular as diferenças, mas trazer para junto. O humor é uma forma ótima de fazer isso. Eu, pelo menos, sempre usei o humor para fazer amigos e refazer amizades. Quem sabe o humor não vai reunir o Brasil e operar esse milagre de fazer a gente voltar a se sentir morando num país só, e não em países diversos e opostos. Tomara que sim.”
“O grande trunfo do humor é falar as coisas mais sérias, mais delicadas, criticar o momento ou a sociedade de forma cômica ou de forma absurda. Tu começa a rir e de repente pensa: ‘É verdade isso, essa informação não é brincadeira’. A gente reflete sobre um tema sério a partir dessa via aberta pelo humor.”
Keila Mellman“Acho que a Keila Mellman foi um sucesso rápido porque, por meio dela, falei algo que todo mundo estava pensando. Essa personagem – uma arquiteta que precisou se reinventar na pandemia e virou decoradora de lives do Instagram e, depois, consultora de comportamento nas redes sociais – fez de mim uma porta-voz de um pensamento coletivo. O que ela começou a dizer não era um incômodo só meu. Fiz, num primeiro momento, como um desabafo, porque estava olhando espantada aquelas imagens de festas e aglomerações no Réveillon. Em todas as fotos de Ano-Novo que eu via, as pessoas estavam entre outras 30 pessoas e diziam: ‘Estamos aqui devidamente testadas’. Aquilo era chocante para mim. Fiz o primeiro post da Keila para meus 6,5 mil seguidores e, talvez por esse sentimento de indignação compartilhado, ele viralizou. Foi sendo replicado no Twitter, e eu nem tenho Twitter. Costumo dizer que sou uma analógica que viralizou. As pessoas iam do Twitter para meu Instagram e, de repente, eu tinha 140 mil seguidores no final de março (hoje, são mais de 230 mil).”
É de bom-tom?“A origem da Keila é, na verdade, anterior ao primeiro post. A personagem começou em junho de 2020, quando fui convidada para participar de uma live para ajudar baristas que haviam perdido o trabalho na pandemia. Era uma live sobre café, e eles convidaram amigos e artistas para shows, performances. Sempre desenvolvi os personagens solo com minha irmã, Ana Kaplan. Desde o Terça insana, ela me ajudou a escrever os papéis que eu fazia sozinha. A Ana é um termômetro para mim. Como nos conhecemos muito, se eu acho graça numa coisa dela, e vice-versa, é algo que provavelmente vai dar certo. Foi minha irmã quem lembrou do bordão que a personagem usa, uma expressão que era muito comum antigamente, mais usada por socialites: ‘É de bom-tom?’ Assim, a Keila passou a receber perguntas (são de ficção, claro, criadas por nós) e a responder. A gente via as pessoas postando: ‘Sextou, são seis e meia da tarde, hora do meu drinque’. Tudo bem, pode postar, mas tem mais de 500 mil mortos. Não é de bom-tom. A Keila responde isso, e funciona como uma crítica social, de comportamento.”
“Eu e minha irmã não temos um cronograma, não tem um dia certo para gravar. A Keila só vem quando tem um assunto. Por exemplo, quando as pessoas estavam indo para o México passar a quarentena para tomar vacina nos Estados Unidos, quando o Bolsonaro é muito grosseiro com as jornalistas mulheres, no caso da falsificação de atestados para tomar a vacina ou uma festa no Copacabana Palace. São assuntos que vão acontecendo. A gente parte de uma ideia real, e o personagem é sempre fictício, pode ser uma pessoa que foi à festa e que pergunta para a Keila se pode postar. A partir disso, a gente faz um paralelo com o que está acontecendo no país. Se a história for sobre vacina, falamos sobre quantas pessoas foram vacinadas no Brasil, qual é o percentual. Na história das ofensas de Bolsonaro às jornalistas, a Keila cita a porcentagem de mulheres na população brasileira (52%).”
“Muita gente me escreveu dizendo: ‘Você foi muito importante pra mim. Tenho pensado muito antes de postar’. Se você mora numa casa espetaculosa e está sendo seguido por gente que não tem o que comer, por mais bacana que seja sua casa, não é uma novela. Existe uma ostentação que não é a hora de fazer.”
O humor é do povo“O fato de o humor ser popular é um supertrunfo porque tem uma comunicação imediata. Shakespeare colocava na boca do bobo, daquele personagem que era do povo, as maiores verdades contra os reis. As críticas políticas estavam sempre na boca do bobo. Porque ele tem essa graça, e a crítica vai passar pelo humor, mas ainda será uma crítica. Não por acaso, Shakespeare é um clássico, porque ele sabia usar esse lugar dos personagens. Na Grécia antiga, a comédia ficava mais para o povo, e a tragédia e os dramas tinham até um júri mais elitista. Tanto o bobo de Shakespeare quanto os personagens das comédias da Grécia podiam fazer as críticas sociais, políticas e morais sem que os atores fossem acusados de cometer alguma ilegalidade, porque estava tudo no universo da ficção. A comunicação, no humor, é direta. A comédia cutuca, incomoda, e acho que critica de um jeito mais leve.”
Panorama político“Acho pouco provável que consigamos, com o humor ou com argumentos, converter apoiadores desse desgoverno. Existem as pessoas que se arrependeram, e que ótimo que se arrependeram e pensem agora antes de votar de novo. Mas as posições desse governo estavam claras mesmo antes da eleição. Desde o início, mostravam-se a favor da tortura e contra pobres, gays, mulheres, negros, indígenas, chineses, ou seja, uma lista de preconceitos interminável. Não foi uma surpresa. Para as pessoas que seguem defendendo Bolsonaro em 2022, não existe conversão. O grupo que defende um governo que permite a liberação de armas e que podia ter começado a vacinação muito antes não vai mudar de posição. Não há humor que salve, não existe diálogo para isso. Acho que podemos, sim, balançar a pessoa que está em dúvida, ou que votou em branco na última eleição. Isso pode ser transformado agora, e o humor é de fato uma ferramenta importante. Espero que as coisas gravíssimas acontecendo no país, somadas ao trabalho de artistas que estão criticando esse cenário trágico por meio do humor ou se posicionando claramente, empurrem as pessoas para que pensem nas próximas eleições, independentemente de quem esteja do outro lado da disputa. A frase continua: ‘Ele não’.”