RAIO-X DE UM DESFILE

Balenciaga inverno 2021
alta-costura

Por Luigi Torre
Você provavelmente já deve ter lido ou visto algo sobre o assunto mais comentado da última temporada de desfiles de alta-costura: a Balenciaga. E foi um grande acontecimento, cheio de significados, referências e algumas das melhores roupas vistas nesta estação. Muitas delas, aliás, não devem demorar para chegar em versões adaptadas às lojas mais próximas de você. Não custa lembrar que o estilista georgiano é um dos mais influentes do mercado e responsável por pautar algumas das principais tendências dos últimos anos.
Mas, antes de falar sobre o desfile em si, vamos de história. Cristóbal Balenciaga fundou sua marca em 1937 e se tornou um dos couturiers mais influentes da história da moda. Christian Dior, em si, chegou até a dizer que ele era “o mestre de todos nós”. Dominando o ofício da costura, o espanhol desenvolvia construções complexas, dignas da ascensão de uma nova linguagem não só estética como também técnica. Peças em forma de balão, babydolls volumosos e criações retas, quase arquitetônicas, foram só algumas de suas muitas contribuições que, pouco tempo depois, se tornariam fontes de referência para tantos outros, incluindo Hubert de Givenchy, de quem foi mentor, e Azzedine Alaïa.
Cristóbal Balenciaga, em 1927 | Foto: Getty Images
Em maio de 1968 – e é importante prestar atenção nessa data –, descrente e amargurado com os rumos da alta-costura, Cristóbal decidiu encerrar as atividades da maison. A importância da data é sobre a série de acontecimentos sociais, impulsionados por movimentos juvenis e estudantis, que ganhou relevância a partir de então. Tudo isso teve reflexo na moda, que deixava (ou fingia deixar) sua pecha elitista para abraçar as vontades da rua. Foi quando o prêt-à-porter realmente se popularizou, transformando toda a estrutura da indústria.
Hoje, o caminho é quase inverso. Pelo menos no sentido de devolver às roupas e à moda um pouco do interesse, da elaboração e do cuidado no feitio, perdidos com a massificação e comoditização do setor. Daí parte da importância desse desfile.
Em uma temporada em que técnica e construção estiveram no centro das atenções, Demna Gvasalia tem lugar de fala garantido. Antes mesmo de assumir o cargo de diretor criativo da Balenciaga, em 2015, ele já dizia que seu trabalho era mais sobre roupa do que moda. É importante lembrar que essas palavras não são sinônimos. Enquanto a primeira expressa um tipo de materialidade, é o objeto em si, o produto, a segunda está mais ligada à linguagem, a uma construção imagética baseada num sem-número de fatores.
O atual diretor criativo da Balenciaga, Demna Gvasalia | Foto: Getty Images
Em 2014, quando lançou a Vetements, marca que comandou até 2019, Demna não estava interessado em contar histórias, mas em reescrever o que se entendia por algumas das peças mais básicas e comuns de nosso guarda-roupa: a calça jeans, o casaco de moletom, a camiseta. Um ano depois, quando foi contratado pela Balenciaga, a moda entrou para a equação. Suas primeiras coleções eram quase como estudos antropológicos sobre a maneira de se vestir de determinado grupo de pessoas: turistas, executivos, políticos e até clubbers quarentenadas, ansiosas pela próxima rave. Agora, com a alta-costura, o casamento entre esses dois lados é não só perfeito, mas também extremamente sofisticado.
Cinquenta e três anos depois de Cristóbal fechar as portas de sua loja e ateliê na Avenue George V, em Paris, os mesmos salões onde o estilista espanhol apresentou suas criações foram reabertos. E como se nada, apenas o tempo, tivesse acontecido por lá. A reforma foi toda brifada para reproduzir exatamente como era o espaço.
Antes de o desfile começar, era possível ver – e ouvir – os convidados tomando seus lugares, cumprimentando os coleguinhas e fazendo conversinhas mil. Havia uma trilha sonora discreta, meio jazz, meio lounge music, que, de repente, é interrompida. Fica só o som do pipipi-popopó até que a artista, modelo e musa de Demna, Eliza Douglas, invade uma das salas, de terno preto levemente oversized, silhueta meio lânguida, meio estruturada, uma pequena faixa branca nos punhos e uma rosa vermelha em mãos.
Do nada, o silêncio. No lugar do falatório e dos murmurinhos, só o barulho do caminhar e dos tecidos se movimentando sobre o corpo. Se a moda ainda não tinha seu próprio ASMR de luxo, agora tem.
Desfile com trilha sonora foi uma invenção um tanto tardia – os primeiros datam da década de 1970. E Cristóbal gostava de silêncio absoluto em suas apresentações para que suas roupas pudessem ser apreciadas com toda a atenção.
Naquela época, as entradas das modelos eram cantadas numericamente e, por vezes, com narração sobre as peças que compunham cada um dos looks. Aqui, os números só aparecem nas fotos e a descrição veio por escrito. Ainda assim, para quem ainda não tinha catado o que significava a restauração do espaço nos moldes originais, ficou evidente o que estava acontecendo.
O olhar para o passado e sua remodelagem ou alteração para o presente é o que mantém a moda em movimento. E Demna sabe bem disso. Sabe também o quão arriscado é reinterpretar ícones pura e simplesmente, sem avançar em termos técnicos e criativos. 
Em entrevista ao site The Business of Fashion, o diretor de criação conta que começou a desenhar a coleção pelos vestidos de festa. Inicialmente, era o que mais imprimia couture para ele. Esses modelos são adaptações de designs e silhuetas originais do fundador da marca, como vocês podem ver abaixo.
Contudo, seria um tanto cômodo encerrar por aí. Sabemos bem quantos estilistas e marcas vivem ou viveram de reproduções de sucesso do passado. Diz-se que, em dada hora no processo criativo, Demna não estava se vendo naquelas criações. Sentia falta de sua essência, do que sempre gostou de fazer e do que lhe garantiu sucesso.
Daí surgem os jeans (feitos manualmente com um tear vintage encontrado nos EUA e com botões de prata), as peças tipo uniforme esportivo, os blazers oversized de ombros exagerados, os tricôs de cashmere e as camisetas – segundo o estilista, elas foram as peças mais difíceis e demoradas de fazer na coleção. No caso, são de seda e dubladas com o mesmo material que Cristóbal Balenciaga usava para conseguir as estruturas arredondadas tão características de sua silhueta.
Isso não é exatamente uma novidade no repertório do diretor criativo na Balenciaga. Demna já havia trabalhado com elementos da alta-costura nas coleções de prêt-à-porter da grife. Desde seu début, era possível lincar as golas projetadas para cima das camisas e jaquetas com silhuetas criadas por Cristóbal Balenciaga. O volume arredondado dos sobretudos ou das jaquetas esportivas também se conectam aos arquivos da maison. 
Looks de coleções de prêt-à-porter da Balenciaga, criados por Demna Gvasalia | Fotos: Getty Images
Mas agora é diferente. Desde de janeiro de 2020, quando foi anunciada a volta da marca para a alta-costura, Demna falou algumas vezes sobre seu desejo de modernizar esse segmento. Com isso, muita gente imaginou peças feitas com as mais avançadas tecnologias, tecidos inovadores e por aí vai. Não foi bem o que aconteceu. Na verdade, foi o completo oposto. Praticamente toda a coleção é feita à mão, como exige as normas da Fédération de la Haute Couture et de la Mode. E isso não quer dizer que o estilista tenha negado a proposta inicial.
Jeans couture não é novidade desde 1988, mas a maneira como eles foram feitos e apresentados tem lá seu ineditismo (ainda mais considerando o casting). O mesmo vale para as camisetas. De acordo com o diretor criativo, a ideia de introduzir tais peças estava ligada ao preço delas. Altíssimo, não se iluda, porém menor do que o de um vestido inteiramente bordado, que, provavelmente, só seria usado por uma consumidora não tão simbólica da clientela com quem Demna conversa há tempos. Modernizar, vale dizer, é diferente de democratizar. E, ao que tudo indica, existe muito consumidor em potencial que só não compra alta-costura porque não se identifica com a imagem final. E, nesse sentido, a Balenciaga sai na frente.