Raio x de um desfile

Ronaldo Fraga - SPFW N51 Terra de Gigantes

Por Pedro Diniz
Fotos: Augusto Pessoa

Popular é um desses adjetivos dúbios. No português, a palavra é classificada como algo relativo ao povo e ao que lhe pertence, lhe agrada, tem seu afeto e é compreendido. É nessas últimas três funções, porém, que reside a dicotomia do verbete por estas bandas: o que se entende como popular pode enfrentar resistência do próprio povo, não ser compreendido e, pior, jogado na vala do esquecimento. A moda por muito tempo – e até hoje – deu prazo de validade ao que se entende como popular e transformou parte da herança de um povo em algo antiquado.

Ronaldo Fraga é um estilista brasileiro que se revolta contra a equação citada acima. Enquanto a moda internacional se especializa na apropriação das culturas de países à margem da estética eurocêntrica, o designer mineiro trava batalhas para resgatar e enaltecer as raízes da cultura nacional escondidas em locais ermos. O objetivo é despertar o afeto do brasileiro por seu passado e fazer com que ele seja compreendido. A coleção Terra de Gigantes, apresentada na São Paulo Fashion Week N51, no final de junho, é um emblema desse esforço.

O Cariri cearense foi o ponto de partida para o estudo de campo feito por Fraga com alguns dos gigantes que habitam essa região do Nordeste brasileiro, na Chapada do Araripe. O desfile foi apresentado em um filme de 12 minutos, gravado entre ruas, ateliês e museus no sul do Ceará. Lá, imperam figuras pouco comentadas pela moda, mas emblemáticas da estética enredada no imaginário do país. Alguns deles são os mestres Espedito Seleiro, Françuli e Zulena, três referências para a coleção, construída sobre uma única base de linho, com aplicações de rendas e bordados.

Maior nome da estética do cangaço aplicada ao couro, Seleiro, como o próprio nome diz, ganhou fama ao produzir selas e gibões para os vaqueiros da região. Os gibões são as jaquetas originalmente curtidas com couro de bode ou cabra. Pelas mãos de Seleiro, já ganharam exposições pelo mundo com seu colorido único e referências essenciais à estética do cangaço, a exemplo da Cruz de Malta e da Flor de Lis. Hoje, porém, os grandes ícones de seu trabalho são as sandálias rasteiras costuradas com linhas circulares (inspiradas nas curvas dos gibões) aparentes e tingidas com técnicas desenvolvidas por ele. O modelo mais famoso foi seu pai quem criou para um cliente especial: Lampião (leia mais aqui). A peça que calçou o cangaceiro está exposta no Museu do Ciclo do Couro. Na coleção de Fraga, os desenhos do mestre Seleiro aparecem em uma espécie de túnica e em um vestido forrado com detalhes de couro.

Em uma cidade próxima, Potengi, está o museu e a oficina de Françuli. A iconografia do mestre é repleta de aviões feitos de zinco e flandres, em uma técnica própria de reciclagem usada na produção manual de brinquedos no interior nordestino. As obras de arte entraram na coleção como um elemento bruto, presos a um dos looks, em meio às rendas richelieu desenvolvidas por rendeiras locais, parceiras de Fraga em sua jornada de valorização da história têxtil nacional. Outro elemento nesse sentido é o crochê: ele aparece no primeiro vestido do filme protagonizado pela atriz e modelo Suyane Moreira, que empresta os traços miscigenados intrínsecos ao país e à ideia dessa coleção.

Por falar em fusão de cores, peles e comportamento, não se poderia tratar do Cariri – nem de todo o universo imagético nordestino – sem mencionar a religiosidade, principalmente os choques e transformações impostos pela catequização, através dos colonizadores cristãos, da população indígena (o nome Cariri tem origem no da tribo Kariri-Xocó, os primeiros habitantes desse pedaço do sertão nordestino) e negra. Inspirado no traje da estátua mais famosa de Juazeiro do Norte (CE), cidade próxima desse caldeirão cultural, Fraga reinterpreta o hábito de padre Cícero. A veste longa, inteiramente arrematada com botões, recebe ombros e modelagem um pouco mais ajustados em um vestido preto e branco.


As cruzes do catolicismo viraram detalhes vazados em peças únicas, entre o alvirrubro de um vestido sem mangas, no qual se veem corações cravados pelo jugo da religião, e em um conjunto de calça e blusa, em que as linhas horizontal e vertical das cruzes viram detalhes vazados pela renda richelieu.

Mas o estilista não se restringe a reproduzir os signos da religião e trabalha também com seus efeitos no comportamento social e cultural. Única peça íntima da coleção, uma calcinha de couro foi adicionada como um cinto de castidade – um símbolo da moral europeia, que paulatinamente foi incutida na mente do brasileiro.

O peso da religião ainda é traduzido em maxiescapulários feitos de couro por Rogério Lima, designer e parceiro de longa data do estilista. São bolsas enroladas ao pescoço em formato de medalhões, corações e cruzes. Lima também assinou o cinto de castidade e uma bolsa em formato de lamparina, que era a única forma de iluminar as noites estreladas quando não havia energia elétrica disponível no entorno.


Fraga se permite viajar por essas referências e também pelo folclore. Os adornos coloridos lembram os trajes juninos e a memória da mestra Zulene Galdino, um ícone local por sua luta pela manutenção das festas de folguedo, que transcendem o tempo.

Outra expressão máxima da força sertaneja, o bacamarteiro, um soldado de traje azul e vermelho, é homenageado pelo próprio estilista. Ele aparece vestido com o look militar e a espingarda bacamarte à mão e mostra uma peça de crochê confeccionada nas mesmas cores.


Uma das tradições mais presentes na cultura do sertão, e não só no Cariri, o reisado aparece nas máscaras de mestre Antônio Luiz. Feitas de madeira e couro de bode, são caretas que adornam os foliões dessa festa, também trazida pela colonização portuguesa e originalmente composta de um grupo de passantes, que percorriam as casas anunciando a chegada do messias. Eles usam as mesmas fitas presas ao corpo de Suyane em um dos looks do filme fashion dirigido por Marcelo Belém.


As linhas sinuosas e coloridas das esculturas de animais fantásticos, com a assinatura de mestre Noza, parecem latentes no vestido em silhueta A (comum no trabalho de Fraga) amarelo com linhas vermelhas, as mesmas tonalidades vivas usadas pelo autor nas obras fictícias.

Os pássaros coloridos que decoram ateliês do grande complexo de museus estruturados com apoio do Sesc-CE, patrocinador desse megaprojeto do estilista, e pela Fecomércio-CE, surgem num dos looks mais impactantes da coleção: um vestido preto com as imagens coloridas de pássaros bordados. O cinto com fivela de espelho, também assinado por Rogério Lima, remete aos pequenos espelhos redondos das casas sertanejas.


As sandálias de tira colorida e as botinas, igualmente tingidas, levam a assinatura de Virgínia Barros, colaboradora assídua de Ronaldo Fraga, e cujas linhas, formas e cores remetem às criações do mestre Espedito Seleiro. Ela adiciona, porém, um pequeno espelho na parte de cima de um dos calçados, que lembra a audácia de um tempo em que os meninos se desdobravam para ver por debaixo da saia das garotas.

A coleção costura boa parte da história por trás da construção patriarcal do interior nordestino, a rudez convertida em arte e a inocência de um povo extremamente orgulhoso de sua cultura. Cultura essa que ainda enfrenta a pobreza e o descrédito da própria elite cultural brasileira.

O foco da obra alinhavada e poetizada por Ronaldo Fraga é esse pedaço do Ceará, mas tem relação direta com o folclore, a história e a luta de todo o interior nordestino. Seria possível tratar das rendeiras de renascença nas cidades pernambucanas Poção e Pesqueira, da literatura de cordel na Feira de Caruaru (PE), do bordado filé alagoano, da xilogravura de J. Borges, em Bezerros (PE), e dos mestres ceramistas do Alto do Moura e do Agreste.

Há todo um mundo a ser reencontrado pela moda brasileira, mas ele é circundado por muros invisíveis, construídos por essa própria indústria, agarrada a modelagens, cores e estética colonizadas. Ou, como diz o próprio Fraga, catequizadas. O que ele propõe na coleção é exatamente a descatequização, a ressignificação do popular não como um signo de algo menor, mas como o adjetivo de uma terra de gigantes livres.

Raio-X de um desfile é a uma seção fixa da ELLE View, em que todos os meses examinamos uma apresentação recente, trazendo detalhes sobre as roupas e explicando por que vale a pena você saber mais sobre ela.