RAIO-X DE UM DESFILE

Pyer Moss - Alta-Costura  
WAT U IZ

Por Gabriel Monteiro
FOTOS GETTY IMAGES
A apresentação couture da Pyer Moss estava pronta para acontecer no dia 8 de julho, o último dia dos desfiles de inverno 2021 de alta-costura. Devido às restrições da Covid-19, o evento aconteceria em Nova York e não em Paris, como de praxe. A meteorologia previa chuva, mas o que rolou foi uma tempestade – com 36 horas de precipitações torrenciais, em consequência do furacão Elsa. E o desfile era ao ar livre.
O público presente esperou por quase três horas debaixo d’água, com suas capas e guarda-chuvas brancos em mãos. Dentre os convidados, muitas celebridades, como o rapper A$AP Ferg, a cantora Justine Skye, o stylist Law Roach e a modelo veterana Bethann Hardison, além da atriz e empresária Tracee Ellis Ross. 
Havia um motivo importante para essas estrelas não arredarem o pé, apesar do dilúvio. O designer estadunidense Kerby Jean-Raymond estava prestes a apresentar a sua primeira coleção dentro do calendário oficial de alta-costura. Esse evento, que é considerado o mais luxuoso do mercado de moda e tem mais de 150 anos, nunca havia contado com um designer estadunidense negro em seu line-up. Não se tratava de um desfile qualquer. 
No entanto, foi necessário dar o braço a torcer para a natureza. Em dada hora, o estilista subiu ao palco dizendo que a chuva estava pesada demais, que era grato pela espera de todos e adoraria retribuir o amor que sentiu naquele momento. E o fez. De várias maneiras. A primeira foi distribuir uma lembrancinha aos colegas, algo que provavelmente já faria. Maconha foi dada aos presentes em pequenos tubos que traziam os dizeres: “Nós estamos cansados de esperar por reparações e uma desculpa. Até lá, estamos dentro do mercado de maconha”. 
A frustração era visível, mas os convidados trataram de consolar o designer e demonstrar o seu apoio, dançando na chuva. 
O evento foi, então, adiado para o sábado seguinte, dois dias depois. E a tragédia foi apropriada pela marca, como quem ri da própria desgraça. Logo após o ocorrido, a grife subiu em seu site a foto da passarela alagada estampada em uma camiseta. Fora isso, Kerby Jean-Raymond abriu a apresentação do dia 10 para os fãs. Foi feita uma chamada pública no Instagram para a doação de 100 ingressos. Mais de 9 mil pessoas se inscreveram em menos de uma hora.
No dia 10, o sol abriu e a coleção Pyer Moss Couture 1 enfim aconteceu. Uma série de inventoras e inventores negros que contribuíram (e muito!) para a vida moderna, apesar do reconhecimento pouco lisonjeiro da história, foram lembrados pelo estilista.
A começar pela locação: a Villa Lewaro, uma mansão em Irvington, ao norte de Nova York. O espaço foi a residência de Madame C. J. Walker no começo do século 20. Filha de escravizados, Walker foi a primeira de sua família a ter liberdade por direito. Ela virou uma empresária do ramo de cosméticos e enriqueceu formulando principalmente produtos para o cabelo de mulheres negras. Ela ficou conhecida na história como a primeira mulher negra milionária da América. 
A empresária e ativista Madame C. J. Walker, em 1913.
A tal da mansão, um pedido de A’Lelia Walker, sua filha, foi projetada por um nome igualmente importante para a história afro-americana: Vertner Tandy, o primeiro arquiteto negro registrado em Nova York. Além de lar para a família Walker, o espaço serviu como ponto de encontro para intelectuais negros.
Frequentou a Villa Lewaro, por exemplo, o sociólogo e ativista por direitos civis W. E. B. Du Bois. Primeiro homem negro Ph.D de Harvard, ele fundou a NAACP (Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor), em 1909. Além de Du Bois, juntavam-se na residência para conversas e trocas nomes como os dos escritores e ativistas por igualdade racial Zora Neale Hurston, James Weldon Johnson e Langston Hughes. 
Antes de o desfile começar, era possível ver – e ouvir – os convidados tomando seus lugares, cumprimentando os coleguinhas e fazendo conversinhas mil. Havia uma trilha sonora discreta, meio jazz, meio lounge music, que, de repente, é interrompida. Fica só o som do pipipi-popopó até que a artista, modelo e musa de Demna, Eliza Douglas, invade uma das salas, de terno preto levemente oversized, silhueta meio lânguida, meio estruturada, uma pequena faixa branca nos punhos e uma rosa vermelha em mãos.
A'Lelia Walker, filha de Madame C. J. Walker, fazendo as unhas em um dos salões de sua mãe, em 1920.
Todas essas personalidades fizeram parte do Harlem Renaissance, um movimento que aconteceu entre os anos de 1910 e 1935. Esse foi um desdobramento da chamada Grande Migração, nos EUA, quando uma série de pessoas negras mudaram do sul do país para o norte. O renascimento do Harlem ficou caracterizado pela efervescência de arte, literatura e música criada e alimentada pela comunidade negra da região, com infiltrações por toda Nova York. 
Não é necessário uma lupa para perceber como cada detalhe desse desfile está amarrado com a ideia de pioneirismo negro. Quem abriu a apresentação foi outro exemplo da quebra de tradições opressoras, alguém que foi para a linha de frente da inovação durante a década de 1960: Elaine Brown, ex-líder do partido dos Panteras Negras e a primeira e única mulher nessa posição dentro da organização. Ela entrou no desfile antes de qualquer modelo.
Elaine Brown, ex-líder do partido dos Panteras Negras.
Brown olhou para os presentes e questionou o futuro, resgatando algumas palavras de Martin Luther King, mais especificamente do seu discurso de 1967, na Convenção da Liderança Cristã do Sul, em Atlanta. A ativista perguntou à plateia: “Para onde a gente vai daqui para a frente? Para onde vai o nosso movimento pela liberdade daqui em diante?”  
Na sequência, entrou o rapper 22GZ, ao som de uma banda e acompanhado por dançarinos, todos eles negros e vestidos com smoking brancos. Os homens serviram como pano de fundo musical e imagético para as modelos, que, enfim, avançaram na passarela circular.
Intitulada de WAT U IZ, a coleção mostrou 25 looks com o intuito de “reintroduzir criações de pessoas afro-americanas para pessoas afro-americanas e não deixar que a história apague essas informações”, como disse Jean-Raymond. “A imaginação negra é a maior tecnologia deste mundo”, ele afirmou à imprensa depois da performance.
Com interpretações bastante literais, sem margem para equívoco, a alta-costura da Pyer Moss representou algumas criações, frutos de uma extensa pesquisa sobre patentes fornecidas pela Biblioteca do Congresso de Washington.
Um dos looks foi um tributo a Madame C. J. Walker. A modelo Chavi St. Hill apareceu com um manto, como o de realeza, só que formado por rolinhos de cabelos, os bobes. A imagem faz referência à maneira como Walker enriqueceu e também lembra que os tais rolinhos foram criados por um homem negro, Solomon Harper. Walker e seu trabalho também foram resgatados em outro visual, com vestido longo e escuro, com franjas nas laterais, que representa um alisador de cabelos. Esse objeto foi inventado pela empresária milionária.
É importante dizer que o manto com rolos de cabelo levou mais de quatro meses para ficar pronto. À primeira vista, as roupas parecem romper com a tradição do savoir-faire, muito pela aparência alegórica. No entanto, cada peça passou por um trabalho intenso de ateliê, como pede a cartilha couture.
Um espaço de trabalho temporário foi montado em Westlake, em Los Angeles, para que a equipe de estilo da Pyer Moss trabalhasse especificamente nessa coleção, ao lado de profissionais que fazem figurinos dos maiores filmes de Hollywood. Tudo à mão. Aquelas roupas podem até lembrar fantasias, mas são o resultado de uma execução cuidadosa e cheia de história por trás. 
O conjunto, que remonta uma casquinha de sorvete, por exemplo, lembra que a sobremesa foi introduzida nos Estados Unidos na Filadélfia, no começo do século 19, por meio do confeiteiro afro-americano Augustus Jackson.  
Já o celular retrô e de tamanho agigantado, usado pela modelo Aslay, foi a maneira de recordar Henry T. Sampson, homem negro e engenheiro nuclear, que descobriu as tecnologias necessárias para o desenvolvimento do aparelho móvel. 
Um terno com aplicações de objetos que replicam um tabuleiro de xadrez pontuou que o jogo, geralmente associado a uma elite burguesa, está presente na história de muitas civilizações antigas africanas. 
O minivestido amarelo, usado com botas da mesma cor e em formato de escova de cabelo, é para não deixar esquecer a autora desse item tão presente em nosso cotidiano: a afro-americana sufragista Lyda D. Newman.
Já o look pote de manteiga de amendoim, que cativou parte das redes sociais, foi uma referência a George Washington Carver, cientista negro que desenvolveu mais de 300 maneiras de usar o produto sem o qual os estadunidenses não vivem. 
Outro vestido, o de tecido acetinado rosa e todo drapeado, usado com um chapéu em formato de abajur, foi uma homenagem a Lewis Latimer, o inventor que contribuiu para o desenvolvimento da iluminação elétrica, criando filamentos mais duradouros, no século 19. Sem ele, não haveria lâmpada. 
Um visual mais conceitual, depois, em formato de cabana e com as cores da bandeira afro-americana (a versão da bandeira dos Estados Unidos só que nas cores vermelho, preto e verde), foi uma ode ao artista plástico David Hammons, que a criou.
Fora isso, rolou ainda a saia-tampa-de-garrafa (Amos E. Long e Albert A. Jones), o macacão-pistola-que-dispara-água (Lonnie Johnson), o espartilho-máscara-de-gás e o minivestido-semáforo (Garret Morgan), além do conjunto em que se viu uma mão negra segurando um esfregão de limpar o chão, uma referência a Thomas Stewart, o afro-americano responsável pela invenção do mop.
Frederick Jones, por sua vez, foi lembrado por ter inventado o ar-condicionado e o refrigerador móvel, a nossa famosa geladeira. E foi justamente a roupa-geladeira que encerrou a apresentação da Pyer Moss, trazendo ainda outra pergunta provocadora. Ímãs de letrinhas formavam a frase: “E quem inventou o trauma negro?” Além do desfile, todos esses looks farão parte de uma exposição neste segundo semestre na própria Villa Lewaro. 
Talvez para apimentar a origem dessa coleção tão enraizada em pesquisa histórica, Jean-Raymond afirmou que toda a ideia nasceu durante um ritual de consumo de ayahuasca, no Parque Nacional de Joshua Tree, na Califórnia, com boa parte de sua equipe de criação presente. Segundo ele, na mesma manhã do ritual, a marca recebeu o convite para participar do evento francês. 
No entanto, é possível reconhecer uma série de outras influências criativas na coleção. Boa parte delas parte do movimento pop art e passa por nomes de estilistas como Jean-Charles de Castelbajac e Jeremy Scott, atual diretor criativo da Moschino. Esses dois designers, mesmo que influentes, já foram considerados cafonas pelo olhar exagerado, surrealista, naïf e bem-humorado que têm da moda. 
Exagero e até mesmo cafonice são termos pejorativos comumente associados a estilistas negros dentro de uma crítica obviamente racista, além de desinformada. O próprio desfile da Pyer Moss foi alvo de ataques virtuais, com comentários desvalorizando a apresentação e argumentando que ela está longe de ser alta-costura. 
Outro nome importante na escolha de Jean-Raymond em apresentar roupas tão figurativas, exageradas e camp na passarela é Patrick Kelly. O estilista teve o auge da sua carreira nos anos 1980, com elementos alegóricos, vibrantes e certamente políticos.  
O estilista Patrick Kelly, em seu estúdio parisiense, em 1988.
E aqui é mais do que necessário abrir um parênteses. Quando foi divulgado que Kerby Jean-Raymond seria o primeiro designer estadunidense negro da história a fazer parte do calendário de alta-costura, muita gente que curte moda se perguntou: e Patrick Kelly? O designer também havia sido convidado para desfilar em Paris, porém não no mesmo evento que a Pyer Moss.
A confusão é comum porque se trata de um sistema que nem todo mundo sabe como funciona. A Federação de Alta-Costura e de Moda Francesa conta com três órgãos centrais, ou Câmaras Sindicais: a de alta-costura, a de prêt-à-porter (ready-to-wear ou pronto para vestir) e a de moda masculina. 
Dentro da Câmara Sindical de alta-costura existem, por sua vez, três categorias de marcas: 16 maisons qualificadas para essa designação (Chanel, Dior e Givenchy, por exemplo) e as sete grifes que não estão sediadas em Paris, mas participam (como Fendi, Valentino e Iris Van Herpen), além de um grupo de convidados para se apresentar em cada temporada. A Pyer Moss foi uma dessas. 
Em 1988, Patrick Kelly fez 65 looks a convite da Câmara Sindical do prêt-à-porter, o que ele chamou na época de “um piscar de olhos para a alta-costura”. Algo que, infelizmente, nunca aconteceu.
Outros estilistas negros não estadunidenses também já participaram do evento. Jay Jaxon ou Eugene Jackson foi o primeiro couturier negro de Paris a apresentar uma coleção, em 1970. Porém não se tratava de uma grife própria, mas sim do trabalho como diretor criativo da Jean-Louis Scherrer. Algo parecido também rolou com Olivier Rousteing para a Balmain, em 2019, quando o estilista quebrou o hiato de 16 anos da grife longe da couture. 
A questão é que, além de sistematicamente excluídos desses eventos, há um apagamento da contribuição desses designers negros na moda e na alta-costura. Na década de 1960, por exemplo, Hylan Booker foi projetista-chefe da casa de Charles Frederick Worth, que é considerado o pai da couture. O nome de Booker, no entanto, não é tão presente nos livros de história da moda. 
Não é em vão a escolha de Kerby Jean-Raymond em celebrar a contribuição negra no mundo. E é mais do que certo que o arquivo deixado por Patrick Kelly tenha passado pelo seu olhar no desenvolvimento de sua primeira coleção de alta-costura para a Pyer Moss. 
Um grande interessado por símbolos figurativos, Kelly já se apropriou até mesmo do blak face (com a imagem do personagem Gollywog) ao subverter como essa figura foi usada para estereotipar pessoas negras ao longo dos anos. Confrontando o desconforto da indústria da moda em assumir as suas desigualdades raciais, ele chegou a usar essa imagem como logo de sua marca. 
Para Kelly, era possível encarar a maneira como as pessoas brancas tentavam enfraquecer os negros ao se apropriar desses símbolos e usando-os para contar mais uma vez a história. O estilista faleceu no início de sua carreira, aos 35 anos de idade, em decorrência da aids. 
O figurativismo ou uso de símbolos muito fáceis de identificar não são necessariamente parte do DNA da Pyer Moss, mas a valorização de outros criadores negros é, sem dúvida, sua coluna vertebral. Chamada de um projeto de arte que opera dentro da moda, a Pyer Moss foi fundada por Jean Raymond em 2013. De lá pra cá a união de roupa, arte e ativismo político ajudaram a jogar holofote a uma série de líderes afro-americanos. 
Uma de suas apresentações mais marcantes foi a do verão 2016, quando a grife celebrou o movimento Black Lives Matter. Em sua trajetória de apresentações estão ainda um desfile feito na Weeksville, onde foi formada uma das primeiras comunidades negras livres do país, além de uma ode a Rosetta Tharpe, mulher negra que nem sempre é lembrada como uma das fundadoras do rock.
Vanessa Friedman, crítica do The New York Times, escreveu, sobre a coleção de alta-costura da Pyer Moss, que com esse desfile Kerby Jean-Raymond “se associa a uma nova seara de estilistas dentro do calendário de alta-costura que trabalham com as regras mais tradicionais e elitistas da moda, para reinventá-la em seus próprios termos”.
Ainda que o convite oficial da Câmara de Alta-costura não o tenha incluído por definitivo em seu rol de estilistas, sua participação no evento já funcionou como um cavalo de Troia do progresso dentro dessa organização, historicamente exclusiva e excludente. 
Raio-X de um desfile é a uma seção fixa da ELLE View, em que todos os meses examinamos uma apresentação recente, trazendo detalhes sobre as roupas e explicando por que vale a pena você saber mais sobre ela.