Muito além dos monstros

Você pode não ter reparado, mas o cinema de terror vem há anos refletindo o que acontece no mundo e na sociedade, como o crescente protagonismo feminino. Prepare uma pipoca e acompanhe a evolução do gênero por meio de filmes marcantes.

por Mariane Morisawa Fotos: Reprodução

A vitória de Titane, dirigido pela francesa Julia Ducournau, no 74º Festival de Cannes, em julho, não foi histórica somente por ela ter se tornado a segunda mulher a ganhar a Palma de Ouro, depois de Jane Campion, com O piano, em 1993. Titane é um raro filme de terror premiado em um dos festivais de maior prestígio do mundo. “É muito significativo, até porque Cannes não é o festival mais inclusivo”, disse à ELLE Carissa Vieira, roteirista, cineasta e especialista em cinema de terror. No cinema comercial, Nia DaCosta se tornou, com seu A lenda de Candyman, a primeira mulher negra a estrear um filme no primeiro lugar da bilheteria, em agosto. A produção, que custou estimados 25 milhões de dólares, já arrecadou mais de 75 milhões. 

Julia e Nia fazem parte de um movimento crescente, embora ainda insuficiente, de diretoras no universo do terror. Mas esse é um acontecimento relativamente recente, e certamente impulsionado pela pressão por mais mulheres atrás e na frente das câmeras, que ganhou força com iniciativas como o Me Too e o Time’s Up. 

Monstros assustadores e situações aterrorizantes sempre fizeram parte das narrativas humanas na mitologia, nos contos de fadas, na literatura. A tradição gótica, que deu origem ao terror moderno, teve mulheres como Ann Radcliffe, criadora de Os mistérios de Udolpho (1794), e Mary Shelley, autora de Frankenstein, ou o Prometeu moderno (1818), como dois de seus maiores nomes. 

No cinema, o terror esteve presente praticamente desde a invenção do cinematógrafo, em 1895, que concebeu o cinema tal como o conhecemos hoje: como espetáculo público, com projeção em uma parede. A mansão do diabo, de Georges Méliès, lançado em 1896, é considerado o primeiro filme do gênero. É bem possível que você nunca tenha ouvido falar de Alice Guy, mas ela foi uma das primeiras cineastas da história, começando sua carreira em 1896 e dirigindo estimados mil filmes, quase todos perdidos. Entre eles, produções de horror, como Fausto e Mefistófeles (1903). Sua trajetória no cinema, como a de tantas outras mulheres, foi praticamente apagada, sendo resgatada mais recentemente graças ao trabalho de profissionais feministas.

Na frente das câmeras, a situação não era muito melhor. “No começo, as mulheres eram as donzelas inocentes, sempre desmaiando, assustadas, gritando e sendo protegidas pelos homens”, diz Michelle Henriques, crítica, curadora e pesquisadora de cinema. 

A seguir, conheça a evolução do cinema de terror no último século, que sempre refletiu as principais transformações sociais e históricas – além dos medos vigentes:

O corcunda de Notre Dame (1923)
O gabinete do Dr Caligari (1920)

A Primeira Guerra Mundial e o nascimento do terror moderno.

Depois daqueles primeiros experimentos com a linguagem cinematográfica, que mais lembravam truques de mágica ingênuos, o terror rapidamente se desenvolveu. Havia motivo de sobra para isso. A Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, matou 9 milhões dos 60 milhões de soldados que lutaram. Outros 21 milhões ficaram feridos. Cerca de 10 milhões de civis pereceram. Na mesma época, aconteceu tanto o genocídio armênio quanto a pandemia de gripe espanhola, que vitimou estimados 50 milhões de pessoas. O mundo anterior simplesmente deixou de existir. A morte, a dor e a desesperança faziam parte dos chamados loucos anos 1920, que terminaram na ascensão do nazifascismo.

Foi assim que nasceu o terror moderno no cinema, embebido na morte, na loucura, na falta de sentido, nos defuntos que voltavam para se vingar, em um mundo assombrado por fantasmas e seres monstruosos, mutilados, deformados. Na Alemanha, o expressionismo invade as telas de cinema, com cenários distorcidos, um mundo sem lógica, em longas como O gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene, Nosferatu (1922), de F. W. Murnau, e M, o vampiro de Düsseldorf (1931), de Fritz Lang. Tanto Murnau quanto Lang tinham lutado na guerra.

Nos Estados Unidos, que se tornavam uma potência mundial, era a hora dos personagens monstruosos. Com suas maquiagens elaboradas, Lon Chaney foi O corcunda de Notre Dame (1923), de Wallace Worsley, e O fantasma da ópera (1925), de Rupert Julian. Ambos eram humanizados por se apaixonarem por mocinhas. Os monstros sempre apareceram como alegorias, em geral, representando o medo do outro, fossem comunistas, negros, extraterrestres, imigrantes.

Drácula (1931)
Frankenstein (1931)

O horror ganha nome

A década de 1930 foi particularmente frutífera. Com o advento do cinema falado, as criaturas agora grunhiam – e as mocinhas gritavam. O público queria berrar junto para esquecer o mundo triste lá fora, que estava mergulhado na Grande Depressão, enquanto o nazifascismo crescia na Europa. Foi então que surgiu a nomenclatura oficial para o gênero: horror. Sob o comando de Carl Laemmle Jr., a Universal lançou seus monstros. Em 1931, estrearam Frankenstein, de James Whale (um veterano da guerra), e Drácula, de Tod Browning, estrelados respectivamente por Boris Karloff e Bela Lugosi, dois dos maiores astros do terror da história. 

Os cientistas malucos eram figura fácil nos filmes de horror da época, com os avanços científicos e a eugenia motivando experimentos condenáveis. Fredric March chegou a ganhar o Oscar de ator por sua versão de O médico e o monstro (1931). Em 1934, veio o Código Hays, que estabelecia padrões de decência e proibia tudo o que era considerado perversidade, blasfêmia ou nudez no cinema.

A múmia (1932)
O lobisomem (1941)

O terror mora ao lado 

De vez em quando, havia a tentativa de uma obra mais elaborada, como a refilmagem de O médico e o monstro de 1941, dirigida por Victor Fleming (de O Mágico de Oz e...E o vento levou) e estrelada por Spencer Tracey e Ingrid Bergman, no papel de uma garçonete seduzida e encarcerada pelo senhor Hyde. Mas, em geral, o cenário foi dominado por produções de baixo orçamento, que usavam nomes como Boris Karloff e Bela Lugosi como chamarizes. Lobisomens, zumbis e fantasmas fizeram suas aparições. 

Os horrores da Segunda Guerra e o medo dos comunistas, da guerra nuclear e dos extraterrestres alimentariam o cinema do gênero por muitas décadas. Os cenários inspirados em contos de fadas e longínquos reinos europeus não faziam mais sentido. O terror era aqui e agora, nos subúrbios estadunidenses, nos pântanos, nos desertos. Os monstros sofriam com efeitos da radiação e viravam criaturas trágicas, muitas vezes apaixonados por mocinhas indefesas em vestidos reveladores. 

O advento da televisão fez com que o cinema procurasse truques para atrair a audiência, seja o 3D e até cadeiras que davam choques. O horror foi empurrado para orçamentos cada vez mais modestos.

Halloween ® A noite do terror (1978)
Os pássaros (1963)
Psicose (1960)

A revolução sexual e o avanço feminino 

A década de 1960 foi de transformação profunda, com a revolução sexual e de costumes, uma nova onda de feminismo, a luta pelos direitos civis, assassinatos políticos, a Guerra do Vietnã e a Revolução Cubana, corrida espacial. Mesmo assim, era um período de esperança. Ao mesmo tempo, o Código Hays perdia seu poder. Violência e nudez fizeram seu retorno triunfal – os estúdios Hammer fazem sucesso com suas produções de terror para adultos. As liberdades conquistadas pelas mulheres causavam medo, e até o mestre do suspense, o próprio Alfred Hitchcock, entra na brincadeira, com Psicose (1960), sobre um homem que é um monstro, e Os pássaros (1963), baseado na obra de uma mulher, Daphne Du Maurier, em que os bichos do título atacam por alguma razão oculta e inexplicável. São dois filmes que teriam extrema influência nas décadas seguintes. As mulheres passam a ser as protagonistas, nem que para serem mortas no chuveiro ou aterrorizadas por aves. “Aparecem no terror as femme fatales do cinema noir: as vampiras lésbicas, assassinas”, diz Henriques.

Para Carissa Vieira, houve uma mudança nos anos 1970 e 80. “O cinema começa a ser mais explícito, surge o slasher (filmes de terror com assassinos matando indiscriminadamente) . A dilacerada é sempre a mulher, punida pela sua sexualidade. Ao mesmo tempo, é uma mulher que sobrevive no final, mas só se trouxer valores do passado. Só vive a mocinha pura, virginal”, aponta. 

Surgem assim alguns dos tropos (temas usados à exaustão), que persistem desde então. Por exemplo, a contraposição da santa contra a prostituta, a virgem e a mulher que exerce sua sexualidade. Essa última costuma ser a primeira a morrer – isso se não houver algum negro ou amiga negra antes. O que leva a um segundo clichê, a “final girl”, aquela que sobrevive à carnificina, sempre virginal. Cria-se a “scream queen”, a rainha do grito, a atriz que costuma ser a estrela desses filmes. Uma das maiores “scream queens” da história é Jamie Lee Curtis, da franquia Halloween. Não por acaso, filha de Janet Leigh, “scream queen” de Psicose.

A hora do pesadelo (1948)
Alien o 8º passageiro (1979)
Carrie a estranha (1976)
O bebê de Rosemary (1968)
O iluminado (1980)

O satanismo em voga

Os anos 1960, 70 e 80 são férteis para muitos tipos de terror, refletindo primeiro um período de esperança, revolução sexual e cultural e luta pelas liberdades civis, depois de turbulência e desesperança com o Caso Watergate e o Vietnã e por fim do excesso e das desigualdades. Os filmes tratam de tensão racial por meio de zumbis (A noite dos mortos-vivos, 1968, de George Romero), de saúde mental por meio de fantasmas (Os inocentes, 1961, de Jack Clayton), de gravidez e satanismo (O bebê de Rosemary, 1968, de Roman Polanski), da ameaça dentro da família (O iluminado, 1980, de Stanley Kubrick), da puberdade e sexualidade femininas (O exorcista, 1973, de William Friedkin, e Carrie, a estranha, 1976, de Brian De Palma). 

Depois dos massacres da Família Manson, nos anos 1960, não é de admirar que os filmes sobre satanismo e invasões de casas tenham se tornado comuns nos Estados Unidos, com Halloween – A noite do terror (1978, de John Carpenter), A hora do pesadelo (1984, de Wes Craven) e Sexta-feira 13 (1980, de Sean S. Cunningham). O mesmo se deu fora do país com o sucesso dos chamados “giallos”, ou slashers italianos, de Mario Bava e Dario Argento. 

O terror também podia estar no espaço (Alien, o 8º passageiro, 1979, de Ridley Scott) e no mar (Tubarão, 1975, de Steven Spielberg). Podia ser a metáfora do envelhecimento (A mosca, 1986) ou dos perigos da mídia (Videodrome, 1983), ambos de David Cronenberg. Podia criticar o consumismo (Madrugada dos mortos, 1978, de George Romero). Podiam até ser para a família (Gremlins, 1984, de Joe Dante, e Os caça-fantasmas, 1984, de Ivan Reitman), com muitos componentes de comédia.

A lenda de Candyman (2021)
Nós (2019)
O silêncio dos inocentes (1991)

Serial killers, tortura e terrorismo

Nos anos 1990, os vilões passam a ser os serial killers – Hannibal Lecter em O silêncio dos inocentes (1991, de Jonathan Demme), o assassino dos pecados em Seven: os sete crimes capitais (1995, de David Fincher). 

Na década seguinte, com o 11 de Setembro e a guerra ao terrorismo, outros temas começaram a invadir a tela, como o horror sem face (muitas vezes, zumbis). E os relatos de tortura de suspeitos de terrorismo impactaram o surgimento de todo um subgênero chamado de “torture porn”, com a série O albergue, de Eli Roth, e Jogos mortais, iniciada por James Wan, com cenas explícitas de tortura e mutilação. Os japoneses trouxeram sua visão do terror e da morte, com filmes sobre espíritos e maldições que atingem qualquer pessoa em qualquer lugar. Seu tom e ritmo são diferentes, mas não menos aterrorizantes, como no caso de Ringu (1998, de Hideo Nakata). 

Nos últimos anos, o diretor Jordan Peele foi o grande responsável por levar ao gênero a discussão sobre o racismo sob o ponto de vista das pessoas negras, em filmes como Corra!(2017), vencedor do Oscar de roteiro original, e Nós(2019). Peele usou seu sucesso para apoiar como produtor outros criadores de conteúdo negros, incluindo duas mulheres: Misha Green, na série Lovecraft country (2020, HBO), vencedora de dois Emmys, e Nia DaCosta, no filme A lenda de Candyman (2021).

A bruxa (2015)
Midsommar (2019)
O homem invisível (2020)
Suspiria (2018)

Mulheres ao centro

Finalmente, as mulheres foram ganhando seu espaço, como personagens e como criadoras. “O que muda é o olhar. Elas deixam de ser sexualizadas na tela – quase todas morriam desnudas”, diz Carissa Vieira. “Ao mesmo tempo, as temáticas se voltam para as complexidades da mulher. Ela não é mais simplesmente uma histérica, porque isso acontecia muito, e se torna uma pessoa complexa.” O Babadook (2014, de Jennifer Kent), por exemplo, trata da depressão relacionada à maternidade. Grave (2016, de Julia Ducournau) fala de canibalismo, mas em referência à puberdade da mulher. Relíquia macabra (2020, de Natalie Erika James) aborda o envelhecimento. No Brasil, cineastas como Gabriela Amaral Almeida, Juliana Rojas e Anita Rocha da Silveira também têm conseguido seu espaço no gênero. 

É fato que as produções dirigidas pelos homens continuam dominando o cinema comercial. A novidade é que eles começaram a tratar suas protagonistas mulheres com mais sensibilidade. A bruxa (2015, de Robert Eggers) tem no centro a adolescente Thomasin (Anya Taylor-Joy), que vive na sociedade puritana dos Estados Unidos do século 17, sofre a repressão de seus desejos de independência e aceitação e acaba acusada de ser uma bruxa. Suspiria (2018, de Luca Guadagnino) é uma refilmagem do clássico giallo de Dario Argento, bem atmosférica, com uma representação da maternidade por meio de Susie (Dakota Johnson), que vai estudar dança na Berlim de 1977 em uma academia comandada por bruxas. Midsommar (2019, de Ari Aster) trata do trauma da jovem Dani (Florence Pugh) depois da morte trágica da família e seu relacionamento tóxico com o namorado. Apesar do título, o personagem principal de O homem invisível (2020, de Leigh Whannell) é Cecilia (Elisabeth Moss), que foge do namorado abusivo e tem a impressão de que ele ainda está vivo mesmo depois de seu suicídio. 

Essa onda de filmes vem sendo chamada de pós-terror ou “terror elevado”, porque supostamente lidam com assuntos mais adultos, de forma mais madura. Para quem estuda e conhece o gênero, os termos são considerados puro esnobismo. Porque o horror, mesmo em suas versões mais sanguinolentas e cheias de sustos, sempre foi uma alegoria dos medos dos indivíduos e da sociedade.

Invocação do mal (2013)
Mama (2013)
Um lugar silencioso (2018)

Terror custa pouco e arrecada muito

Os filmes de terror normalmente são altamente lucrativos porque custam pouco. Mesmo durante a pandemia, foi lançado Um lugar silencioso 2, dirigido por John Krasinski, com Emily Blunt no papel de uma mulher encarregada de proteger sua família. O longa faturou mais de 297 milhões de dólares e custou cerca de 22 milhões. Invocação do mal 3: a origem do demônio, de Michael Chaves, foi feito com 40 milhões de dólares e rendeu 201,9 milhões. 

Boa parte dessa bilheteria vem das mulheres, contrariando outro clichê de que elas só vão ver esse tipo de filme acompanhadas de homens. Um estudo publicado em 2017 apurou que 60% dos fãs de filmes de terror são mulheres. Invocação do mal (2013), de James Wan, teve uma audiência 53% feminina nos Estados Unidos. A de Uma noite de crime (2013), de James DeMonaco, foi ainda superior, com 56% de mulheres, e Mama (2013), de Andy Muschietti, chegou a 61%. Elas também são maioria na frente das câmeras: 53% do tempo de tela e 47% dos diálogos nos filmes de terror são delas, contra 45% das cenas nos romances, supostamente um gênero feminino. Está mais do que na hora de assistir a mais filmes que tenham personagens femininas complexas, escritos e dirigidos por mulheres.