Paixão
nacional

Alcione não deixa o samba morrer e ainda vira a nossa cabeça. Às vésperas de completar 50 anos de carreira, a Marrom é tema de um recém-lançado documentário e de um musical inédito de Miguel Falabella. De volta aos palcos, ela fala de vaidade, da partida de Marília Mendonça, do movimento negro e de uma nova geração de cantoras, que inclui Ludmilla: “O samba precisa dessas mulheres”.

Kaftan, Emilio Pucci.
Brinco, Gucci. Pulseira,
HStern. Anel, Lilac.
Kaftan, Emilio Pucci.
Brinco, Gucci. Pulseira,
HStern. Anel, Lilac.

Paixão
nacional

Alcione não deixa o samba morrer e ainda vira a nossa cabeça. Às vésperas de completar 50 anos de carreira, a Marrom é tema de um recém-lançado documentário e de um musical inédito de Miguel Falabella. De volta aos palcos, ela fala de vaidade, da partida de Marília Mendonça, do movimento negro e de uma nova geração de cantoras, que inclui Ludmilla: “O samba precisa dessas mulheres”.

Por Bruna Bittencourt
Fotos: Pedro Napolinário
Edição de Moda: Suyane Ynaya e Lucas Boccalão

Alcione chega ao estúdio, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, discreta, de braços dados com seu produtor, cumprimentando toda a equipe, que responde com certa reverência à rainha do samba. “Deixa eu dar um cheiro na minha pequena”, diz quando avista Ludmilla. Logo, as duas combinam algo na Mangueira. Em pouco tempo, a Marrom quebra o gelo, canta, faz a equipe rir.

Um dos nomes mais carismáticos da MPB, Alcione Dias Nazareth, 74 anos, conta até aqui quase 50 anos de carreira e mais de 40 álbuns (o mais recente, Tijolo por tijolo, só de inéditas, foi lançado no ano passado). Essa trajetória acaba de ser contada em Alcione ‒ O samba é primo do jazz (2021), documentário de Angela Zoé, disponível para aluguel no streaming.

No filme, a acompanhamos cantando ao longo das décadas ao lado de Beth Carvalho e Maria Bethânia, Cartola e Caetano Veloso, entrevistada por Hebe e Marília Gabriela, na Mangueira ou em sua São Luís do Maranhão. “É uma coisa tão bonita quando você vai assistir, né? Poxa, eu passei por isso tudo? Eu sou aquilo tudo? É muito legal isso”, conta, após as fotos para a ELLE. A revisão em torno da obra da Marrom não para por aí. Miguel Falabella prepara um musical sobre a cantora, previsto para estrear no segundo semestre de 2022.

Essa rota musical é também uma herança familiar: seu pai foi mestre da banda da polícia militar de São Luís, além de professor de música. Foi com ele que ela aprendeu a tocar clarinete, trompete e saxofone alto. Aos 13 anos, acabou substituindo o crooner de uma orquestra em que seu pai tocava.

Poucos anos depois, no fim da década de 1960, foi tentar a sorte como cantora no Rio de Janeiro. Com seu trompete, interpretava de tudo na noite carioca, até lançar seu primeiro compacto, em 1972, e fazer a transição para uma cantora de samba, trocando a noite pelo dia. Alcione também encontrou sua vocação como cantora romântica, mas ela já interpretou até um repertório só de canções francesas em show, imprimindo sempre sua digital, com um fraseado próprio, sob a influência de jazzistas como Ella Fitzgerald (daí o título do documentário). Amiga de Axl Rose, ela tem fãs como o rapper Snoop Dogg, que já postou vídeo ouvindo “Você me vira a cabeça”, hit absoluto da Marrom.

Alcione também é uma sambista conhecida pelo glamour e pela vaidade, sempre de batom vermelho, vestindo caftãs e com as unhas “chamativas”, como ela define (são duas horas de manicure, a cada 15 dias, em que não podem faltar pedras Swarovski, conta). Não à toa, faz campanhas para marcas de beleza. Recentemente, assumiu os cabelos brancos.

Durante a pandemia, fez lives do bar que leva seu nome. São dois no Rio, um na Barra e outro no Catete, inaugurados no último ano com sócios, além de um terceiro previsto em São Paulo. O empreendimento tem sua irmã Solange na linha de frente. Já Maria Helena – são ao todo nove irmãos – é sua empresária há anos. Em setembro, Alcione reencontrou o grande público. Neste mês, fez show ao lado de Martinho da Vila com a Brasil Jazz Sinfônica, na Sala São Paulo. E voltou a rodar o Brasil.

Na entrevista à ELLE, ela responde tudo com calma, falando baixo, consulta seu produtor quando lhe falta alguma data ou informação (“Ele sabe tudo”) e ainda canta para a gente.


Top e calça, ambos Teodora Oshima. Colar, Swarovski. Pulseira, HStern.

Quando você começou a cantar exatamente? 

No quintal lá de casa (no Maranhão). A minha mãe lavou muita roupa para sustentar a gente. Eu cantava na varanda de casa para o quintal. Tinha um português, seu Fernando, que morava no fundo da minha casa. Era muito meu fã e eu cantava para ele. (Alcione interpreta uma canção portuguesa.) “Canta isso de novo, que saudade do meu Portugal”. (Imita o sotaque lusitano dele.) E, quando ele me pedia para cantar de novo, eu cantava. 

Aí você foi substituir o cantor da banda do seu pai? 

Fui, aos 13 anos. Meu pai não queria que eu cantasse porque a orquestra tocava em bailes. Só quando ele ia fazer o aniversário de uma menina é que me levava para cantar. Depois, quando vim do Maranhão para o Rio de Janeiro, cantei na noite. O meu pai já não se metia mais comigo, deixava eu cantar: “Vai fazer a tua vida, minha filha”. Eu tinha 19 anos, quase 20. Fui morar com o meu irmão, José Ribamar, e comecei a trabalhar no Império dos Discos, na Marechal Floriano (avenida no centro do Rio de Janeiro), para vender discos e ter um emprego. Depois, fui cantar na noite. 

Era difícil? O quão desbravador era uma mulher cantando na noite no fim dos anos 1960? 

Ah, isso foi muito desbravador. Era difícil porque ninguém me conhecia. Cheguei com o meu trompete numa sacola da Casas da Banha (extinta rede fluminense de supermercados). Estava sentado um rapaz que até já faleceu, Everardo, que era o diretor da casa. Ele disse: “Vem cá, o que você quer com isso aí? O que você está esperando, minha filha?” Eu disse: “Estou esperando para ver se tem uma vaga para mim. Vim aqui mostrar o meu canto e eu toco trompete também”. Ele falou: “Você toca isso?” Digo: “Toco”. Subi no palco, mandei um som e ele falou: “Hum, você já começa amanhã”. 

No Beco das Garrafas? 

Sim. Comecei ganhando 5 cruzeiros. Ele (Everardo) era um grande incentivador meu. Foi uma pessoa que me botou de cara para o gol, me arrumou um emprego. A noite é uma vitrine para nós. Aí, de lá fui passando de casa em casa até que Roberto Menescal foi me ver uma noite na Number One e me pediu para ir até a gravadora no dia seguinte. Fiz um teste e gravei o primeiro compacto. Dali eu vim vindo. 

Você fez uma transição de uma cantora da noite, com um repertório bem variado, que tinha um flerte com o jazz, para uma intérprete de samba, ao lado de Beth Carvalho e Clara Nunes. 

Ele (Roberto Menescal) falava isto para mim: “Você é uma pessoa que pode cantar tudo, mas tem uma brecha aqui na música popular brasileira que você precisa preencher agora”. E eu entrei. Eu cantava samba, cantava muita música romântica. 

Como foi a transição? O samba a conquistou ou já tinha conquistado? 

Penso que sou brasileira, moro no Rio de Janeiro, capital do samba. Tenho que começar pelo samba. Ele é a música deste país. Aí comecei cantando: “Quem me vinga da mandinga é figa de Guiné/ Mas o de fé do meu axé não vou dizer quem é” (Figa de guiné/O sonho acabou, 1972, seu primeiro compacto). E aí Menescal disse: “Você pode cantar tudo”, ele e seu Heleno de Oliveira. Lá fui eu cantando romântico, samba... Hoje, canto tudo, mas as minhas músicas românticas arrebentaram, né? “Minha estranha loucuraaa”, “Você me vira a cabeçaaa” (canta), muitas semanas em primeiro lugar na parada. Não saio de um show sem cantar essa música. Eu diria que é um presente que eu ganhei, essa música e “Rio antigo”. Aliás, eu ganhei vários presentes. Tenho muitas músicas bonitas, os meus compositores sempre arrebentaram. 

Como era para uma mulher cantar samba nos anos 1970? 

Menina, eu vou te dizer uma coisa. Roberto Santana, que era o meu produtor, falou: “Você precisa visitar as raízes do samba, você já é Mangueira, precisa ir no Império (Serrano), conhecer mestre Fuleiro e seu Aniceto (dois dos fundadores da escola de samba)”. E eu fui. Fui também na Portela, conheci a feijoada da tia Vicentina. Conheci todo esse beco do samba, maravilhoso, que me apoiou. Porque, se eles não me apoiassem, eu não era ninguém. Eu me lembro que fui dizer para seu Jamelão “Esse orgulho eu vou levar comigo para o resto da vida”(canta), música de Jair Rodrigues. 

Você costuma mostrar novas sambistas no seu perfil no Instagram. Temos uma geração de mulheres cantando samba e pagode: Ludmilla, Gabby Moura... 

Faço questão de elas participarem porque precisam dessa vitrine. Andréia Caffé, Flávia Saolli, Gabby Moura e tantas outras. Karinah também canta lá no bar (de Alcione). Elas cantam muito e vieram aí para ficar. Não tem jeito. 

O que essa geração traz ao samba? 

Elas trazem a postura delas, aquela voz que o samba precisa sempre. Cada uma tem o seu registro. Andréia Caffé tem o dela, Gabby Moura tem o dela, eu tenho o meu. Você ouve a minha voz e as pessoas sabem que sou eu. O samba precisa dessas mulheres. É um universo muito masculino. Nós temos que botar as mulheres cantando samba, e vai dar certo. 

Kaftan, The Paradise. Colar, Swarovski.
"Você ouve a minha voz e as pessoas sabem que sou eu. O samba precisa dessas mulheres. É um universo muito masculino."

Quando começou sua paixão pela Mangueira?  

Começou no Maranhão, eu abrindo a revista O Cruzeiro. Vi a ala das baianas, todas de rosa, eu me apaixonei pelas cores. Quando cheguei aqui, no Rio, pensei: “Tenho que conhecer esse povo todinho, né?” Fui para a Portela, fui ao Império, foi uma alegria quando fui no Salgueiro. Hoje, eu vou a todas elas, são irmãs. Tenho muito orgulho de pertencer ao mundo do samba, que é um universo muito especial. 

O que a tem interessado na música? 

Gosto muito dessas cantoras que parecem um instrumento, Leny Andrade e Rosa Passos, elas têm muito suingue. Antes de vir para o Rio de Janeiro, eu era apaixonada por ngela Maria, Núbia Lafayette, Dalva de Oliveira, essas pessoas que cantam romântico. É claro que também sempre incorporei um pouco delas quando canto. Não tem ninguém como Elizeth Cardoso, ngela Maria, Dalva de Oliveira. Eram grandes referências minhas. 

Você tem também referências de outras gerações? 

Caetano, Bethânia, Gil. Essa turma mais nova agora. Conheci, por exemplo, o Ferrugem. Como canta aquele pequeno, Jesus do céu. Ele veio nesta terra para cantar. Eu gosto muito da voz de Belo. Tem também Jorge Vercillo. Uma galera que canta bonito. 

O seu pai foi uma grande raiz musical na sua vida. Você conta que ele também estimulou a independência das filhas. 

Elas trazem a postura delas, aquela voz que o samba precisa sempre. Cada uma tem o seu registro. Andréia Caffé tem o dela, Gabby Moura tem o dela, eu tenho o meu. Você ouve a minha voz e as pessoas sabem que sou eu. O samba precisa dessas mulheres. É um universo muito masculino. Nós temos que botar as mulheres cantando samba, e vai dar certo. 

Era um feminista? 

Elas trazem a postura delas, aquela voz que o samba precisa sempre. Cada uma tem o seu registro. Andréia Caffé tem o dela, Gabby Moura tem o dela, eu tenho o meu. Você ouve a minha voz e as pessoas sabem que sou eu. O samba precisa dessas mulheres. É um universo muito masculino. Nós temos que botar as mulheres cantando samba, e vai dar certo. 

Você nunca se casou no papel. Em algum momento, se sentiu julgada por isso, décadas atrás? 

O meu pai era meio feminista. Ele dizia: “Olha, no primeiro dia, é cara feia, no segundo, ele te empurra, e no terceiro, ele te bate. Então, já sabe, eu não quero isso aqui para a minha casa”. Ele apoiava muito a gente. 

"O meu pai sempre dizia: “Você precisa ter a sua casa. Não deixe nunca um homem lhe mandar embora. Você é quem vai mandá-lo embora”.."

Como você, que viveu tempos em que o preconceito racial era ainda maior, tem visto o movimento negro e as mulheres à frente dessa luta?  

Nós, mulheres, temos tomado uma posição e um lugar verdadeiramente nosso. A gente não se cala mais, a gente vai à luta, a gente fala, entendeu? O mundo era muito dos homens e agora passou a ser nosso também. Gosto de saber que posso ter uma fala sobre qualquer coisa, que as mulheres negras estão ocupando o lugar que é delas. Tenho as minhas sobrinhas, que são meninas negras e estão estudando, fazendo faculdade. É difícil discutir com elas, né, Carlos? (seu assessor) Elas são muito bem informadas e eu gosto disso. É muito promissor para a juventude de hoje. 

O que foi mais difícil no período de pandemia? Vimos você homenageando no Instagram vários amigos que partiram. 

Nossa senhora, isso foi muito doloroso. Tive também o meu irmão, que partiu há um mês… Foi muito dolorido para nós. Houve muitas coisas e a mais recente foi a partida de Marília Mendonça, uma coisa que me doeu muito. A gente, que trabalha nesse meio, pensa: “Poxa, eu estou viajando sempre pra lá e pra cá”. Além de ser uma menina, ela era especial, né? Ela tinha uma grande responsabilidade com o público dela e com o filhinho. Isso tudo doeu na gente. Tinha que homenagear a minha colega (no Instagram), rezar para ela toda noite como todo mundo faz. 

Você tem um episódio marcante com o kardecismo. 

Eu tinha uma espinha, não sei o que era, um caroço, um edema (na garganta), do tamanho de uma cabeça de alfinete. Não aguentava mais. Acho que foi uns 30 anos atrás, por aí. O Doutor Fritz (entidade espiritual recebida por médiuns) foi quem me operou. Não era esse médium de agora. Era outro que recebia o Doutor Fritz. Ele estava trabalhando em Recife e eu fiquei na cidade para ele me receber. Nesse dia, ele falou: “Acredita em Deus?” Eu disse: “Acredito”. “Acredita em Jesus?” Disse: “Sim”. Então, ele mandou eu botar a língua para fora. Primeiro, ele pegou uma agulha, tipo dessas de injeção e enfiou aqui. (Mostra a garganta.) Só tive vontade de tossir e no dia seguinte eu já estava cantando igual uma juriti. Nunca mais tive problema de garganta, graças a Deus, e ao Doutor Fritz. Agradeço muito a espiritualidade. 

Você também é devota de Nossa Senhora e dos orixás. 

Eu sou filha de Xangô com Iansã e acredito muito em Ogum. Sou muito católica. Não sou essa pessoa de andar com o terço pendurado toda hora, mas acredito em Deus, acredito na força da oração. É assim que eu vou seguindo a minha vida. 

Você também é conhecida por sua vaidade. O que é essencial para você? 

Tenho que ter uma unha chamativa. 

E não é de agora, desde os anos 1970. 

É verdade. Há muito tempo que eu faço isso. Sempre gostei. Engraçado, a minha mãe não gostava de se maquiar, nunca usou um pó de arroz no rosto. Eu não. Desde pequena, mas ninguém me deixava. Com 14 anos, eu chegava em casa e ia lavar a cara rapidinho para o meu pai não ver. Aí, depois dos 15 anos, ele começou a dizer: “Olha, cuidado com essa cara toda pintada”. Mas depois ele largou a mão, deixou eu fazer. 

Como foi assumir os cabelos brancos? 

Foi antes da pandemia. Comecei a achar muito bonito os cabelos grisalhos e falei: “Quer saber de uma coisa? Não vou mais pintar cabelo de amarelo, de preto, de azul”. E eu gostei, todo mundo gostou.  

Quais os ganhos de envelhecer? 

Eu acho que a idade traz muita experiência, reflexão sobre tudo aquilo que a gente não deve fazer, dar um toque na outra pessoa para alertar. Essa experiência é muito benigna e faz bem para a família, para a gente, para o trabalho. 

Créditos

Beleza: Yann Fernandes
Produção de moda: Ágatha Barbosa e Fabiana Pernambuco
Produção de arte e cenografia: Pedro Flutt
Produção executiva: Isabela de Paula
Tratamento de imagem: Bruno Rezende
Assistentes de foto: Gianfranco Vacani e Nathalia Atayde
Assistente de produção executiva: Carlos Henrique
Camareira: Damiana Pereira