As maiores celebridades se entregaram ao visual da marca. Uma série de internautas passaram a ovacionar o passado e o presente da grife no TikTok. E até mesmo os não-aficionados por moda se interessaram pelo look estranhamente fetichista do tapete vermelho, show e videoclipe da sua artista preferida. Esses são apenas alguns fatos que confirmam que a Mugler vive mais um grande momento de sua história.
É principalmente o body cheio de recortes, que tem regiões de menor e maior transparência, o causador do alvoroço. A peça chegou a ser nomeada “o uniforme da estrela pop em 2021”. Dua Lipa, Beyoncé, Yseult, Cardi B, Megan Thee Stallion e Rihanna são alguns dos nomes que popularizaram o item.
Quem criou ou, melhor, reinventou o traje foi Casey Cadwallader, estadunidense que estreou na casa francesa em 2018. Ele adaptou o DNA da etiqueta, originalmente criada por Thierry Mugler, em 1974, que, na essência, valoriza o corpo por meio do sportswear, mas de uma maneira toda própria e contemporânea. Se as criações de Mugler, em si, reforçavam as curvas femininas de um jeito rigidamente escultural, o body de Cadwallader as envolve.
É em meio a esse sucesso todo que o designer apresenta sua coleção de inverno 2021. A apresentação é em formato de vídeo, com cerca de sete minutos, dirigidos pela Torso Solutions. No curta, não-modelos, new faces e rostos bem conhecidos, como os de Amber Valletta, Jill Kortleve e Bella Hadid, caminham olhando fixamente para a câmera.
Além delas, a atriz Dominique Jackson, famosa pela série Pose, e Lourdes Leon, filha de Madonna, também seguram com os próprios olhos a atenção de quem assiste a esse clipe cheio de efeitos, como as luzes de estrobo piscantes, o zoom in e o zoom out.
Alguns zentais, pessoas cobertas dos pés à cabeça, camuflados com o fundo (em outros momentos eles brincam com a câmera e vestem as peças da coleção), seguram as personalidades, que se jogam de um lado para o outro, desafiando a gravidade e mantendo a tensão excitante de quem acompanha o catwalk. Lembra um pouco a cultura Ballroom e o voguing.
A escolha de persistir no formato de vídeo, enquanto a maioria dos designers volta às passarelas físicas, faz todo o sentido para Cadwallader. A experiência que ele teve com a coleção anterior, a de verão 2021 (aquela cheia de efeitos CGI e com Hunter Schafer, atriz de Euphoria como estrela), foi compartilhada milhares de vezes nas redes sociais.
Com boa entrada entre os jovens fashionistas, ele não vê necessidade de aventuras que não entreguem a mesma viralização. Por enquanto, aproveita a crista da onda que sua segunda pele gera e persiste nos acertos. A roupa grudada segue lá, em tecidos emborrachados, aveludados e transparentes. Saias e minivestidos, bem como alcinhas, luvas e leggings, arrematam o sexy futurista que tanto encanta a Gen-Z.
Essa roupa, desdobramento da lingerie, realmente tem êxito entre a nova geração. Ela é chamada de subversive basic trend, ou tendência do básico subversivo. A Mugler é o principal expoente da trend, mas outros designers caminham por vias parecidas, como Nensi Dojaka, a recente ganhadora do Prêmio LVMH. Trata-se de um revival dos anos 2000, com tecidos que deixam a pele à mostra e são costurados de forma a criar geometrias, furos, buracos e muitas assimetrias.
Além do bodysuit hit, Cadwallader também trabalha o corset como um ponto focal. Com essa peça, ele remodela o torso da mulher, achatando o peito e a barriga em determinadas partes. O top forma novas curvas, tal qual as amarrações do shibari, e ecoa o body modification, que também está na espinha dorsal da grife.
É desse jeito que o estilista reinterpreta o extenso arquivo da casa. Ele não faz reproduções pontuais de coleções, mas compreende o espírito total da etiqueta, simplificando a ideia à sua maneira para montar os looks de agora. Esse corset, por exemplo, não veste apenas mulheres magras. Ele está também em quem tem curvas mais salientes, desenhando com ainda mais afinco os formatos que um corpo pode criar com a roupa.
Inverno 2021 da Mugler. | Fotos: Divulgação
O reforço de seus acertos, no entanto, não significa paralisação. A coleção traz novidades, como a inserção de looks coloridos. Esse é um feliz contraste ao preto total, repetido há muitas estações. Agora, o azul-petróleo, o abóbora, o verde-musgo e o terracota aparecem na paleta, que, às vezes, também ganha um momento fluorescente e um material refletivo a flash para acender tudo. Outra surpresa é a joia de vestir: correntes que formam cortinas no torso, braço e bumbum, puxando a atenção para essas regiões e quebrando qualquer monotonia que o little black dress possa causar.
É sexy, e com equilíbrio. O contraste vem principalmente da imagem ligeiramente densa e sombria. O cenário, completamente branco, flerta com o sci-fi e a própria marca descreve as mulheres da estação como vampirescas. Dá para sacar a queda dark na bota e na sandália de bico superfino – uma colaboração com a Jimmy Choo. E o contraponto à sensualidade vem também do blazer triangular, da calça baggy, do sobretudo militar e da estampa de pied-de-poule desconfigurada, que, de longe, lembra a pele de um animal que talvez não seja desse mundo.
Estranheza, exagero e um pouco de malvadeza fazem desse sexy algo próprio de quem usa e não um presente para quem vê. A mulher Mugler é quase uma vilã com o tanto que se diverte com o próprio corpo.
Um legado fantástico
de couture
Outra confirmação de que o efeito Mugler volta a ser um fenômeno é a Thierry Mugler: Couturissime. A turnê mundial, retrospectiva da carreira de Manfred Thierry Mugler, foi inaugurada em Montreal, Canadá, em 2019, e chegou ao Musée des Arts Décoratifs, em Paris, juntamente com a última semana de moda francesa, em julho passado. A exposição fica aberta até abril de 2022.
Nascido em 1948, em Estrasburgo, França, Manfred Mugler foi bailarino desde a infância. Em 1973, porém, já havia deixado o tablado para abrir uma marca, a Café Paris. Em 1974, a grife virou Thierry Mugler. E, em 1978, veio a primeira butique. Desde 1992, o designer ganhou da Câmara Sindical de Alta-Costura a permissão para apresentar coleções couture.
Mas o passado no palco não foi esquecido. Dizem que uma de suas maiores referências é o figurinista Travis Banton, que vestiu Marlene Dietrich e assinou clássicos como Shangai express e The devil is a woman. Por isso, a roupa de Mugler não tem compromisso com a vida real. Performática, ela é feita para o palco.
A sua roupa, quase alienígena, ficou famosa pela silhueta geralmente em formato de vespa. Enquanto designer, Mugler se interessava pela história que podia contar. As modelos surgiam nas passarelas como super-heroínas, vilãs e monstros. De acordo com o próprio estilista, o desejo era trazer à tona as facetas mais fortes dessas mulheres.
Vestido dragão, da coleção de alta-costura de inverno 1997. | Foto: Getty Images
Ao longo de toda década de 1990, os seus desfiles-espetáculo entraram para a história, com direito a dançarinos, músicos e artistas de circo. Não à toa, uma das grandes apresentações da Mugler, o inverno 1995, é lembrado como um dos desfiles mais icônicos da moda.
Para comemorar o vigésimo aniversário da marca, foi feito um show de alta-costura no Cirque d’Hiver. Lady Miss Kier remixou a faixa What is love com a DJ Sister Dimension. Na música, ela soltava um “what is Mugler?”.
As modelos desciam por uma escadaria, enquanto os convidados ficavam dispostos em vários níveis, como se assistissem a uma ópera.
As roupas traziam a união entre moda, cinema e futuro. O sci-fi estava presente nos chapéus pretos, assinados por Philip Treacy. E a apresentação acabou com o próprio James Brown gritando “it’s a man’s world, but not tonight”, entoando um Sex machine com o público.
O icônico desfile de alta-costura de 1995. | Foto: Getty Images
A alta-costura de Mugler nunca usou peles, couros exóticos e penas raras. Nada que impedisse a fantasia. Por outro lado, na vanguarda, a marca já abraçava mulheres mais velhas e a cultura queer, com direito a go-go boy na apresentação.
Nesse show, assim como em muitos outros, uma modelo e atriz brasileira servia como musa: Betty Lago. Com coque furacão, colares de pérola e usando um vestido corseletado, um casaco-estola com print de zebra e pelos brancos nas pontas, ela era ovacionada pelos convidados presentes. Foram inúmeros desfiles com a carioca sendo o rosto Mugler. O próprio estilista prestou condolências por sua morte, em 2015.
A modelo e atriz brasileira Betty Lago, uma das musas da marca. | Foto: Getty Images
Além de Lago, o designer sempre esteve acompanhado das maiores modelos do momento, que ele alçava como divas. Naomi Campbell, Linda Evangelista, Eva Herzigova, Tyra Banks, Debra Shaw, Amy Wesson, Iman e Jerry Hall são alguns exemplos.
Elas vestiram looks inesquecíveis, como o busto de motocicleta, apresentado em 1992. Um farol se posicionava entre os seios, os retrovisores subiam na direção dos ombros e o guidão formava um peplum na cintura, deixando cair tiras de couro, como as de um chicote. A peça foi eternizada na cultura pop por meio do clipe Too funky, de George Michael.
Outra roupa que ganhou status de clássico foi o pretinho nada básico, com tiras transpassadas no pescoço, usado por Demi Moore em Proposta indecente (1993). A lista de visuais extraordinários é longa, como a roupa de sereia, com corset de acrílico transparente, e o vestido meio dragão, meio criatura marinha, forrado por escamas, do inverno 1997.
À esquerda: look robô do inverno 1996. À direita: top de motocicleta do verão 1995. | Fotos: Getty Images
O look robô que ecoa Metropolis, de Fritz Lang, foi projetado em conjunto com Jean-Pierre Delcros, cuja especialidade era desenhar aviões. Ele foi fotografado em diversos editoriais e também vestido por Beyoncé na turnê I am. Mugler foi o consultor criativo e figurinista da cantora nessa era. Inclusive, foi nessa seara que ele seguiu a sua carreira: como figurinista.
A Clarins, que detém a Mugler desde 1997, foi obrigada a fechar as portas da marca em 2003, em função de perdas orçamentárias consideráveis. Desde que a casa homônima foi interrompida, Mugler passou a atender principalmente pelo primeiro nome, Manfred, e a trabalhar com espetáculos, como os do Cirque du Soleil, em Las Vegas. A única peça de moda que desenhou nessas últimas duas décadas foi o Wet Look, usado por Kim Kardashian, no Met Gala de 2019.
Kim Kardashian, com o Wet Look, no Met Gala de 2019. | Foto: Getty Images
O ready to wear da Mugler só ganhou vida novamente em 2010, nas mãos de Nicola Formichetti. O designer foi bem-sucedido na missão de mesclar a marca com a artista Lady Gaga, cuja imagem ele ajudava a montar naquele momento. Seu sucessor foi David Koma, focado em uma silhueta bem recortada, mas não suficiente para causar o mesmo impacto do passado.
Casey Cadwallader é quem promete, agora, gerar furor parecido, ou ao menos bastante comprometido com o legado da marca. Formado em arquitetura pela Cornell University, de Nova York, ele tem no currículo passagens pelas marcas Narciso Rodriguez, Loewe e Acne Studios.
Como dito, o seu grande feito foi olhar bem para os arquivos, de modo que parece ter compreendido a essência do todo para os dias atuais. Reviveu o body, peça que Mugler colocou na passarela em 1997. O item era um grande exemplo da roupa bodycon, que envolve o corpo como curativo, da mesma maneira que fez o bandage de Azzedine Alaïa, contemporâneo de Mugler.
A versão 2021 de Cadwallader, segundo o próprio, tem como objetivo ser mais inclusiva. Há ainda muito o que avançar no que diz respeito à diversidade de corpos em suas coleções, mas o caminho de mudança é evidente. Se um dia o body serviu para mostrar o quão magro se está, hoje ele tem o potencial de revelar as singularidades de cada corpo.
Raio-X de um desfile é a uma seção fixa da ELLE View, em que todos os meses examinamos uma apresentação recente, trazendo detalhes sobre as roupas e explicando por que vale a pena você saber mais sobre ela.