Raio-x de um desfile

Louis Vuitton - Masculino 7.2

Por Gabriel monteiro

Foto: Divulgação

Você provavelmente viu o vídeo viral de Kanye West e Pharrell Williams encantados pela música “Tudo o que você podia ser”. A canção, escrita pelos irmãos Lô e Márcio Borges, já foi muito ouvida na voz de Milton Nascimento e teve o seu lançamento, em 1972, encabeçado pelo Quarteto em Cy. A faixa tocou na apresentação da linha masculina da Louis Vuitton, em Miami, no dia 30 de novembro, numa homenagem a Virgil Abloh, diretor criativo da ala masculina da grife, falecido no domingo, 28, após tratar privadamente um raro tipo de câncer no coração durante os últimos dois anos.

Ver essa foto no Instagram

Uma publicação compartilhada por Imed Soussi (@theimedsoussi)

Muitas vezes, é necessário decantar o que se viu para ler bem uma coleção, mas a imagem dos músicos rapidamente espalhada pelas redes funcionou como síntese. Dois homens adultos, gigantes da indústria fonográfica, se maravilham por uma música. Ela não é nova, já tem mais de 50 anos, e ainda assim os seus ouvidos, que já ouviram de tudo, parecem tocados pela primeira vez. Com esse vídeo, não só se entende a coleção, como a trajetória de Abloh: ele encorajava pessoas a se permitirem descobrir e redescobrir a vida com uma fascinação infantil.

Chamado de Virgil Was Here, o desfile já estava programado para acontecer antes da morte do estilista. Trata-se de uma das novas investidas da Louis Vuitton em reproduzir, em diferentes lugares, a coleção que era desfilada só em Paris. Por isso, Nicolas Ghesquière e Virgil Abloh prepararam, respectivamente, os spin-offs do verão 2022 feminino e masculino em Xangai (em 17 de novembro) e Miami.

Para a mais recente apresentação, Abloh desenvolveu dez novos looks e chamou a coleção ampliada de 7.2 (ele enumerava todas), uma vez que é a repetição da sétima feita por ele para a grife. Miami foi escolhida devido à abertura da Art Basel Miami (de 30 de novembro a 4 de dezembro). Abloh, também DJ e produtor musical, costumava se apresentar nesse evento. Além disso, a Vuitton inaugurou lá a sua primeira loja masculina nos Estados Unidos, exatamente no Miami Design District.

O último domingo, no entanto, mudou completamente os planos. Ou pelo menos parcialmente. A coleção reapresentada deixou de ser toda essa celebração para virar uma homenagem da marca ao estilista que se foi. De acordo com o Grupo LVMH, que detém a Louis Vuitton, com a própria família do designer, esse também foi um de seus últimos pedidos, de que o show continuasse.

Sendo assim, nomes como Kanye West (Abloh conhecia o músico desde os 22 anos e iniciou na moda ao seu lado, em um estágio na Fendi, em 2009), Kim Kardashian, Rihanna, A$AP Rocky, Pharrell Williams e outras estrelas marcaram presença em frente ao Miami Marine Stadium, uma arquibancada voltada para as águas, de onde se veem atletas de remo competir.

A apresentação começou com um vídeo em que uma criança anda de bicicleta, circula por algumas ruas, olha para o céu e passeia no calçadão de uma praia até chegar a um porto. Lá, encontra um balão vermelho, entra e começa a flutuar. Corta para o cenário físico e quase 100 árvores do tipo bétula foram espalhadas pela passarela. Espécie típica no Hemisfério Norte, ela tem como principal característica o tronco branco e o seu esplendor é alcançado no período de virada do inverno para a primavera. Por isso, no paganismo eslavo, é considerada um símbolo de morte e de renascimento. Existe muita simbologia nessa coleção e ela não tem como ser ignorada.

Um avião de papel agigantado e preto atravessava algumas dessas árvores. Virgil, que se intitulava criador, e não designer, afirmou em várias entrevistas que o avião de papel foi o primeiro objeto que ele aprendeu a fazer com as mãos, quando criança. Reproduzia incansavelmente a dobradura, de tal maneira que ela virou uma de suas assinaturas.

Quando o primeiro modelo entra na passarela, uma fala do estilista surge no ar e tudo se conecta. Ele diz: “Na minha arte, tenho me concentrado em fazer com que os adultos se comportem como crianças, mais uma vez. Porque é assim que eles voltam a ficar maravilhados. Param de usar as suas mentes e passam a usar a sua imaginação”.

Alguns dos looks novos foram desfilados pelos artistas Kid Cudi, Quavo e Offset. Mas, como dito antes, as outras peças eram do verão 2022, divulgado na metade do ano. Essa coleção é um turbilhão de referências. Tanto que o caderno de notas de Abloh sobre a estação ultrapassa as 50 páginas. Aqui fica o exercício de entender as suas combinações estratégicas.

Samples, xadrez e arte marcial

Essa coleção já havia sido descrita como uma metáfora de quando uma pessoa transmite um legado para a outra. Originalmente apresentado em filme fashion, o curta trazia o poeta e músico Saul Williams interpretando um samurai que atravessava um portal com o filho e, depois, um caminho de tempestades e emboscadas. O enredo foi inspirado em Lone wolf and cub, uma clássica história japonesa sobre a relação entre pai e filho.

No vídeo da coleção original, ambos cruzam uma sala branca, também cheia de bétulas, com homens que se opõem ao caminhar dos dois, representando as adversidades. No final, o mais novo chega ao destino, carregando consigo uma espada (ou mensagem) e a passa adiante.

Dos muitos pontos importantes para prestar atenção nessa coleção, o primeiro é o nome. No filme, ela é chamada de Amen Break e esse é o apelido para um solo de bateria gravado pela banda The Winstons, em 1969. Esse foi um dos trechos musicais mais sampleados de todos os tempos, do hip-hop à música eletrônica.

Abloh resgatou essa história não só para falar de repetição, um tema recorrente em suas coleções, como também para salientar que essa música foi tão diluída com o passar do tempo que o crédito original se apagou. Crédito, no caso, muito importante, porque a banda era de soul. O negro soul.

“We come from a compilation of lost tapes”, avisava o filme. Ou, “a gente vem de um compilado de gravações perdidas”. Por isso, a ponte com a música eletrônica serviu como imagem para um dos vários processos de resgate da influência negra em movimentos culturais. Esbranquiçada nas últimas décadas, ela teve os seus verdadeiros donos apagados. Abloh lembra que ela é negra da cabeça aos pés.

E ela não fica na teoria, é colocada na roupa. Dos sintetizadores, vem essa imagem de rave, ácida e psicodélica. Cores fluorescentes explodem em estampas tie-dye, criam efeitos blocados e também alguns degradês. Elas estão nos casacos de pelo e nos conjuntos com shorts. Há também jaquetas, parkas e casacos plastificados, com figurinhas dos anos 1990, além de jeans rasgado e tampões de ouvido que lembram o formato de headphones.

Não é coincidência que o streetwear tenha um caminho parecido com o da música eletrônica. Esse é mais um exemplo do racismo sistêmico. Nascido nos guetos estadunidenses, durante as décadas de 1970 e 80, nas mãos da comunidade negra, o estilo das ruas cresceu de maneira tão genuína que foi apropriado pelas casas de luxo europeias, comandadas por brancos, que precisavam usurpar alguma manifestação legítima para se reinventar.

Sim, os dois universos de interesse e de trabalho de Abloh, música e moda de rua. Ambos com histórias deturpadas pelo racismo. A veia urbana na coleção está obviamente nos tênis Air Force 01, da Nike, mas também no uso de uniformes esportivos monocromáticos, nos detalhes de grafites estampados e nos hoodies com os capuzes bem fechados, além de um ou outro momento pimp, à la Dapper Dan.

Há ainda outras camadas nessa apresentação. Abloh traz para a mesa o xadrez. Ele já havia incorporado a padronagem na campanha da coleção de inverno 2021 porque desejava investigar os nossos preconceitos mais inconscientes. Naquela estação, o criador pegou os arquétipos que temos do escritor, do artista, do errante e do vendedor para explorar nossas percepções predeterminadas de seus códigos de vestimenta. Com personagens familiares, ele procurava mudar as nossas suposições.

Vale lembrar ainda que o jogo de xadrez foi ocidentalmente assimilado como algo de pessoas brancas e para as elites. Muitos países africanos, contudo, defendem que as raízes do tabuleiro estão naquele continente. Kerby Jean-Raymond, fundador e diretor criativo da Pyer Moss, também fez questão de trazer à tona essa história, em sua coleção de alta-costura.

O convite original do desfile, enviado por Abloh, foi na forma de uma caixa de jogos. Nela, você encontrava, por exemplo, um baralho em que as figuras estampadas eram nomes históricos negros. O jogo do estilista com o espectador é cheio de táticas, avança peões em movimentos não óbvios até dar o xeque-mate. O xadrez é trabalhado nas roupas de várias formas. Primeiro, para lembrar que a dualidade coexiste, seja na reunião do formal e contemporâneo, da alfaiataria e do esportivo, da leveza e do volume. Há ainda uma reinterpretação de uma padronagem clássica da Vuitton, a Damier, que é um xadrez com dois tons de marrom. O quadriculado Vuitton, na sua mão, ganha outra roupagem.

No caso, ele traz as cores da capa do álbum Liquid swords, de 1995, do rapper GZA, integrante do grupo Wu-Tang Clan. E aí nós entramos em mais uma camada dessa história, que é a influência asiática nessa coleção. Não só o próprio ninja das rimas, GZA está presente no vídeo como também outro artista da nova geração, Lupe Fiasco. Fiasco vinha assinando uma série de colaborações com a Abloh, a ponto de sua história pessoal também influenciar o estilista.

O pai de Fiasco, membro do Partido dos Panteras Negras, criou uma academia de caratê para crianças da comunidade, no South Side de Chicago, na década de 1980, quando a região ficou forrada de gangues. Essa era uma maneira de ele levar a filosofia das artes marciais para os jovens.

Além de reinterpretar os dojos, uniformes com base de quimono, criados pelo pai de Fiasco, Abloh olhou para o visual de outra luta, o kendô. Vem daí a amarração na região do quadril nos ternos, as balaclavas inteiras ou cobrindo parte do rosto, o uso de tecidos acolchoados, principalmente em coletes, e o volume na parte das pernas, que chegam a virar saias rodadas.

Abloh mostra aí a sua excelência como designer, na capacidade de olhar para muitas referências e desenhar um visual disruptivo baseado nelas. Das artes marciais, desses homens guerreiros, ele reconstrói uma imagem sensível de masculinidade.

Vivian Whiteman, neste texto sobre Abloh, lembra que é por meio de seu olhar decolonial que o estilista desenvolveu uma fluidez, um não-binarismo de gênero. E dá para ir além ao pensar que ele fez isso também usando elementos do streetwear. A silhueta nessa coleção é alongada pela saia com referência japonesa, sua produção genderless tem estudos em vestuários africanos e tudo também ganha uma pitada de fantasia nos elementos esportivos, seja com o artifício da cor ou a modelagem oversized.

Não à toa, Abloh vinha trabalhando com o stylist Ibrahim Kamara, vencedor do prêmio Isabella Blow, dado pelo British Fashion Council, no dia 29 de novembro. O criativo de Serra Leoa sempre afirma, em sua produção, que sua grande obsessão é quebrar os estereótipos de masculinidade, principalmente aqueles que se referem aos homens negros. Juntos, Abloh e Kamara vinham desenvolvendo esse homem que se veste de forma livre.

Após os levantes inflamados pela morte de George Floyd, em 2020, e o Movimento Black Lives Matter tomar as ruas dos Estados Unidos, Abloh fez questão de assinar um manifesto. Nele, dizia que a sua função é destrancar as portas. Isso fica evidente em sua imagem representativa, nas ações que encabeçava, no incentivo para estudantes negros no Post-Modern Scolarship Fund, e em seu design. Abloh abriu portas com as suas roupas.

Em um trecho desse manifesto, ele chega a se comparar a um cavalo de Troia para a mente, porque está cheio de intenções e entra despercebido. A sua ideia era influenciar, sobretudo, a mente de rapazes negros com imagens fantásticas e possíveis, antes que a sociedade os programassem para pensar de forma diferente. De novo, a ideia da liberdade infantil.

E ele fazia isso por meio da nuance. “Acredito na nuance porque sei da inteligência e da percepção do meu público”, afirmava, sem duvidar da capacidade de quem vestia. E é difícil não pensar que o mundo seria completamente diferente e muito provavelmente melhor com homens de Abloh existindo plenamente.

A apresentação da Vuitton em sua homenagem terminou com mais uma fala do estilista. “A vida é muito curta para perder um dia pensando no que alguém pensa que você pode fazer, em vez de saber o que você realmente pode fazer.” Tudo o que a gente poderia ser, não é mesmo!?

Raio-X de um desfile é a uma seção fixa da ELLE View, em que todos os meses examinamos uma apresentação recente, trazendo detalhes sobre as roupas e explicando por que vale a pena você saber mais sobre ela.