Giovanna pod
Edição de moda: Marcell Maia

Era uma vez uma mulher talentosa, empreendedora, bonita, cheia de vida, ideais e ideias, eclipsada por uma sociedade machista. Bom, é assim que eu gostaria de começar esta história. Mas o verbo ser no passado ainda não cabe aqui. Porque até hoje, 2022, 35 anos de idade e uma longa trajetória profissional, Giovanna Ewbank, em alguns lugares, é reduzida a ser a mulher do Bruno Gagliasso. Ou a mãe de Chissomo, 9 anos, Blessings, 7, e Zyan, 2. Talvez, youtuber – com aquela torcidinha de nariz por parte de uma pseudoelite cultural. Como se fosse possível, e até necessário, etiquetar uma mulher e deixá-la quietinha no seu lugar. Bibelô para se observar.
Nascida em São Paulo, quando o Sol estava em virgem, Gioh, como é conhecida na internet e na vida, felizmente não está disposta a cumprir esse roteiro. É sim esposa, mãe e youtuber (com um canal direto com mais de 5 milhões de pessoas). E também influenciadora (com quase 30 milhões de seguidores), atriz prestes a estrear uma série na Disney, empresária de moda e Tedtalker – além de já ter sido modelo e apresentadora do Vídeo Show.
Uma metamorfose ambulante, sedenta por dividir experiências em conversas honestas no seu novo projeto, o divertidíssimo videocast Quem pode, pod, feito em parceria com Fernanda Paes Leme, e disposta a brigar, se for preciso, com racistas – impossível não citar aqui o lamentável episódio em Portugal, e que qualquer mãe partiria em defesa dos filhos –, machistas e todos que ainda enxergam o mundo em P&B.


Gioh, qual é seu estado de espírito hoje?
Olha, essa pergunta é complexa. Ao mesmo tempo que estou olhando mais para mim, para os meus sentimentos, estou num momento muito sensível. No último mês aconteceram coisas muito fortes, e ainda estou à flor da pele, tentando entender tudo na minha cabeça. Sabia que em algum momento passaria por situações difíceis, situações com as quais eu não saberia lidar, mas isso é algo que só a vida mostra de verdade pra gente. O lado bom é que todo crescimento vem de um lugar de desconforto, de dor.
Como é ser tão pública, estar tão exposta, e não ter nenhum controle sobre o que o outro fala ou entende?
A gente não se dá conta da dimensão que pode ter, do tamanho. E este é um exercício que tenho que fazer diariamente: perceber o tamanho da minha fala e tudo o que pode acontecer a partir dela. Em geral, eu e o Bruno, a minha família, que é muito fechadinha, estamos sempre viajando juntos, juntos em casa. Então, acabamos perdendo mesmo a noção dessa exposição, vide esse episódio de Portugal, em que fiquei transtornada, perdida. Queria me esconder, queria ficar dentro do meu quarto com a minha família...
Você é uma mulher branca, que acabou conquistando um espaço, uma voz antirracismo. Como é estar nesse papel?
Eu sei que, em todas as entrevistas que for dar, vou ter que falar sobre antirracismo. Sendo uma mulher branca, privilegiada, e tendo filhos pretos, acabei assumindo um lugar de visibilidade, de poder ser escutada de maneira diferente. Quando eu falo de racismo para outras mulheres brancas, sou validada, enquanto duvidam das mulheres pretas. Assumi um papel de antirracista, querendo passar informação para as pessoas que me escutam e que sei que não escutam milhares de pessoas pretas. É muito triste, no fundo. Por muito tempo, vivi numa bolha e não fazia ideia do quão agressivo, do quão triste o racismo é. E não fazia ideia das maneiras como ele se apresenta no dia a dia, nas nossas vidas. Além de ter tido ajuda de mulheres maravilhosas, como a Taís Araújo e a Regina Casé, eu estudo, pesquiso e tento fazer a diferença de alguma forma porque comecei a perceber o racismo em pequenas coisas – e por meio da minha filha. Chegava a um hotel ou restaurante e não tinha nenhuma pessoa preta sentada, só servindo. Nenhuma criança preta em quem minha filha pudesse se enxergar, se ver. Isso começou a me dar estalos, incômodos. Fico triste de saber que essa percepção só mudou pelo amor que sinto pela Titi.
A estreia do videocast tem a ver com a vontade de chegar a mais pessoas? De aprofundar assuntos de que nem sempre falamos?
Durante a pandemia, eu mudei, o mundo mudou. E o pod é uma troca de experiências. Não é exatamente um programa de entrevistas, e as pessoas até tiveram dificuldade de entender. Escutamos e falamos. E tem sido tão legal, tá fazendo tanto sucesso, que tudo o que é falado lá é repercutido de uma maneira enorme. As pessoas não estão acostumadas a ver mulheres no lugar de opinião, falando de sexo, da vontade de ficar longe dos filhos. São conversas reais, de sentimentos, vontades, desejos. E, embora haja muitos comentários machistas, tem muita gente rebatendo, não aceitando ideias retrógradas. É tão legal esse lugar que a gente tá, porque a internet pode ser muito ruim, mas também muito boa. Abre um lugar para as pessoas debaterem. Tem sido um prazer ler os comentários, por exemplo. Tenho aprendido muito também, ganhado consciência sobre outras coisas. Quando conversamos com a Angélica, por exemplo, e ela falou sobre abuso, me vieram à cabeça algumas situações que eu mesma vivi e antes não percebia. Foi falando com ela que enxerguei momentos em que estava vulnerável, situações de abuso guardadas em um lugar incômodo. E, se tem incômodo, tem algo errado. A gente aprende muito escutando o outro.


Além de se comunicar com uma audiência enorme, você é atriz e começou a carreira como modelo. Como essas áreas se cruzam? Como você definiria seu trabalho hoje?
Comecei a trabalhar como modelo e entrei no teatro aos 15 anos, não porque queria ser atriz, mas porque era muito tímida. Foi um recurso para ficar mais desinibida. E ele mudou a minha vida, a maneira de me comunicar, de me relacionar com as pessoas. Com o tempo, fui fazendo testes para comerciais e novelas e, a partir daí, tudo aconteceu muito rápido. Aos 20 anos, estava na Rede Globo. E, logo no início da minha carreira, conheci o Bruno. Estava na minha segunda ou terceira novela, indo superbem. Mas, a partir do momento em que nos apaixonamos, profissionalmente as coisas começaram a ficar muito ruins para mim. Eu tinha 22 anos e o Bruno já era o Bruno Gagliasso, um grande ator. Passei a ser vista apenas como “a nova namoradinha do Bruno Gagliasso”. Sofri muito com isso. Queria estar com ele, mas fui perdendo o lugar de atriz iniciante para o de namorada. Acabei desistindo de ser atriz depois de uma novela em que ele também trabalhava, Joia rara. Fui massacrada, sacaneada mesmo por outras mulheres “cabeça”. Tiraram minhas falas e começaram a me tirar de cena. Sabia do meu potencial, aonde podia chegar, e era reduzida. Depois disso, o Faustão me chamou para fazer uma reportagem no Malauí e me disse que eu era uma comunicadora, que ele gostava muito da minha maneira de expressar, de escutar as pessoas. Foi ele que abriu a minha cabeça para que eu pensasse em outras possibilidades. Fui para o Vídeo show, mas, mais uma vez, vi que não tinha espaço para fazer o que eu acreditava, o que eu queria realizar. Resolvi então apostar em mim e parar de acreditar no que as pessoas falavam. E funcionou. Acho que a gente tem que acreditar no que sente, no que pensa, e não nos rótulos que nos colocam. Eu acreditei por muito tempo que não era capaz. Quando resolvi fazer o meu canal no YouTube, deu muito certo.
Teve algum tipo de preconceito nessa mudança, do tipo “ah, ela vai ser youtuber agora”?
Eu mesma tinha preconceito. Quando ia a algum evento ou entrevista e falavam “a youtuber Giovanna Ewbank”, eu dizia: “Não, não, eu sou atriz e apresentadora”. Tinha preconceito justamente porque vim da televisão. E pensa quanto tempo demorou para que diversos atores e atrizes entendessem que precisavam, sim, ter seu lugar na internet? Vivenciei as duas pontas e hoje acho muito interessante como isso funciona, como cada um tem seu público, seus desafios. Quando vou para o aeroporto com o Bruno, sempre tem as senhorinhas que o chamam para tirar foto e a geração de 20 anos que pede pra falar comigo.

Você tem alguma válvula de escape? Faz terapia?
Comecei a fazer terapia quando comecei a namorar o Bruno, pois foi muita coisa acontecendo. E continuo fazendo. Terapia, pra mim, é essencial. Não tenho como caminhar sozinha com tantas coisas acontecendo, mundo, trabalho, filhos. Mas acho que a maturidade também vem em algum momento e nos ajuda muito. Meus filhos me deram muita segurança em relação a que mulher sou eu. Filho muda tudo na nossa vida, transforma. Acredito que a grande virada do ser humano são os filhos. São eles que fazem com que a gente queira de fato um mundo melhor, com menos preconceito, menos violência. É uma transformação de fato.
No seu Ted Talks, você fala muito sobre maternidade, mas ainda não tinha tido o Zyan. Está mais fácil com o terceiro?
Eu não queria ser mãe. Isso era inclusive uma questão entre mim e o Bruno, que sempre dizia que nasceu para ser pai. Eu queria crescer na minha profissão e, querendo ou não, filhos travam a mulher. O homem põe uma mochilinha nas costas e vai pra Madri. Por mais desconstruído que meu marido seja, que exerça as funções, cara, ainda é diferente. Ele pega a mochilinha sem culpa e vai. E mais uma vez: é um cara desconstruído, artista, coração, que falava para mim “e aí, eu quero ter filho”. Era cobrada tanto pelo meu marido quanto pela sociedade. Foi em uma viagem de trabalho, quando estava pensando em trabalho, que tive um encontro inesperado com a minha filha. E quando resolvo ter uma filha do coração, preta, vem mais questionamento: “Ah, por quê? Por que ela não quis ter da própria barriga? Ah, não pode ter filho”. É foda ser mulher. A culpa é sempre da mulher. A mulher é sempre questionada, ninguém dizia que o Bruno não podia ter filhos. Era só comigo esse tipo de comentário. Acho que ainda precisamos de muitos e muitos anos de conversa, porque todas as decisões das mulheres são colocadas à prova. Dos meus três filhos, só o Bless foi planejado, e cada um foi uma experiência totalmente diferente. Com a Titi, eu fui muito leoa, carregava ela pra tudo quanto é lugar. Ela nunca teve babá, porque eu sentia que precisava construir uma relação de mãe e filha com ela. Na minha cabeça, eu acreditava que, por não ter gerado, faltaria algo na nossa relação. Sentia que ninguém podia fazer nada com ela, que eu tinha que estar em todos os momentos fazendo tudo. Nunca falei disso, mas virou até uma coisa meio doentia, sabe? As mulheres com as quais ela se conectava muito, como a madrinha dela, me deixavam insegura. Tive que trabalhar muito isso na terapia. Com o tempo, fui vendo que nada disso fazia sentido, que o amor de mãe e filho tá em outro lugar. Já com o Bless, eu fui mais relaxada, mais segura, porque já tinha construído uma relação linda com a Titi. Mas, seis meses depois de ele chegar, quando ainda estávamos construindo uma relação, descobri que estava grávida. E novamente fui pra terapia, porque achava que o bebê estava vindo na hora errada, que o Bless precisava de mais atenção do que aquela barriga. Com o Zyan, que é o terceiro, sou muito mais tranquila. É bonito ver a transformação que cada filho gera na gente.
Toda essa questão do controle sobre o corpo da mulher, sobre a maternidade, vem desse machismo estrutural, dessas pequenas violências que sofremos, né?
Às vezes, as pessoas nem percebem muito. É muito doido. Por exemplo, recentemente fui ao programa de um apresentador que eu adoro e sei que gosta de mim, e fiquei em choque porque éramos cinco entrevistados e para cada um de nós ele fazia uma pergunta logo na abertura, sabe? “Como é seu filme, quais novelas você já fez, ah, suas redes sociais, sua banda…” E, na minha vez, ele perguntou como eu tinha conhecido o Bruno. Caralho. Eu pensei que ele tava zoando com a minha cara. Estou com série na Disney, voltando com o canal no YouTube, tenho algumas novelas feitas e ele me pergunta como conheci o Bruno! O programa acabou ali para mim. Óbvio que ele não viu nenhuma falha da parte dele, porque é naturalizado um papo assim. Mas isso mexeu comigo, fiquei desgostosa, desconfortável para responder qualquer coisa. A gente murcha. Para piorar, no mesmo programa, falamos sobre adoção e tentei colocar minha opinião, que era contrária à de outra pessoa. Mas fui cortada várias vezes. O Bruno não. O homem que coloca sua opinião não é cortado. Tive que parar uma hora e dizer: “Calma aí, eu não terminei de falar”.
Conta então sobre a série pra gente.
Fiquei seis anos sem atuar, por tudo aquilo que te falei. Comecei a me ver competindo com o Bruno, querendo ser como ele ou melhor do que ele, o que é impossível, porque somos seres humanos diferentes, com histórias diferentes, idades diferentes. Recebi vários convites para filmes e séries, mas era algo que tinha me feito tão mal que optei por não fazer. No entanto, nunca deixei de ser atriz. Continuei fazendo cursos, inclusive. Depois que o Zyan nasceu, recebi o convite da Disney para fazer uma série infantojuvenil (A magia de Aruna), que é muito legal. É a história de três bruxas, eu, a Cleo e a Erika Januza, mulheres à frente do tempo, fortes, curandeiras, mulheres das quais a sociedade tinha medo. A primeira temporada estreia no ano que vem e a segunda já está programada. E vou fazer mais um filme, de que ainda não posso falar, mas que começo a gravar em outubro. Estou voltando... Amadureci, sei meu lugar, sei onde estou, quem eu sou. Isso me fez abrir de novo esse espaço.


Além de tudo isso, tem a sua marca, tem a moda. Que papel ela exerce na sua vida?
A minha mãe trabalhou como designer têxtil, foi superpremiada lá fora, teve exposição na Pinacoteca de São Paulo. E eu sempre estive com ela no trabalho. É aquela coisa de a mulher ter que levar o filho. Então, cresci entre tecidos, estampas, projeções. Pra mim, não teve um início, um momento do tipo “ah, comecei a gostar de moda”. Era a nossa vida. Viajava com a minha mãe a trabalho, via como o processo de criação era rico e demorado. Meu amor, minha admiração e meu respeito pela moda vêm daí, vêm da minha mãe, porque foi através da moda que ela bancou tudo na minha vida. E também acredito que a moda tem um papel muito importante, pois permite que a gente se expresse e dite tendências de comportamento, de coisas novas. Acabei de lançar uma linha nova da I Am G, a Energy, voltada para o dia a dia, e minha mãe tá 100% comigo em todas as escolhas de tecidos, estampas, modelagens. A marca tá crescendo junto comigo. A cada passo que dou, ela dá também. Por exemplo, temos um comprometimento com o meio ambiente, assim como eu tenho na minha vida pessoal. Ela traz todos os corpos, cores e raças etc. É mais do que o produto em si. Ela fala, tem um pensamento. A ideia principal é abraçar esse universo onde eu vivo e no qual quero que todos estejam.
Gioh, quem pode, pod. E o que a Giovanna pode?
Minha bio no TikTok, que acabei de fazer, fala isso, inclusive. Sou atriz, apresentadora, youtuber, mãe e o que eu quiser. Quando eu quiser. E, se quiser mudar, tudo bem. Acredito muito que a mudança é boa. Adoro quem muda de opinião, que é uma metamorfose ambulante.